Pensata

Antonio Carlos de Faria

08/05/2004

A fábula das mulas

Esta coluna já tratou desse assunto, mas vale retornar ao tema do inusitado esforço histórico que se desenvolve no Brasil para a criação de um capitalismo sui generis. Um sistema que se baseia não em consumidores, mas em contribuintes.

Talvez essa seja a nossa grande colaboração para a história da economia mundial, algo digno de um prêmio Nobel. A dificuldade será achar alguém para ir receber as glórias em Estocolmo, posto que a obra é coletiva, de autoria difusa.

Graças a esse lento e bem preparado processo, urdido desde os porões dos navios negreiros, temos um capitalismo no qual apenas um sexto dos moradores podem consumir, enquanto os outros lambem os beiços.

O sistema tenta ser igualitário apenas na hora da cobrança de impostos e taxas. A intenção é retirar o máximo que cada indivíduo possa dar.

Funciona à semelhança do armazém em que o dono prefere vender menos a preços altos. Nem passa pela sua cabeça recolher mais com o consumo de massa. Dá muito trabalho, cansa. Além disso, produz uma insuportável cara de felicidade entre os clientes.

É claro que a coisa falha com os muito pobres, que vivem numa completa informalidade, ou com os ricos, que se protegem por trás de departamentos jurídicos e contábeis.

Os muito pobres ainda acabam pagando mais proporcionalmente, pois qualquer prato de arroz com feijão esconde uma ventosa tributária que suga recursos para o Estado.

Porém é com a classe média que o sistema mais se diverte. São esses os pagadores de Imposto de Renda, embora a maior parte nem saiba o que é renda e viva de salário.

São esses os visados pelo banco de sangue federal, no qual o vampiro da dívida pública se nutre tranqüilamente, mal disfarçando os arrotos de satisfação.

O sistema brasileiro beira à perfeição, pois reitera constantemente a doutrina obscura que venera o sofrimento e abomina o consumo, desprezado como indigna realização terrena.

Esse barroquismo é tão arraigado na alma brasileira que chega a se manifestar como culpa. Atinge seu zênite quando faz um indivíduo se sentir pecador ao entrar em uma loja, pois cedeu à tentação demoníaca do consumismo.

O capitalismo à moda tupiniquim tenta repetir a história do gajo que quis ensinar sua mula a trabalhar sem comer. Contribuir sem consumir.

Quando a mula se recusou a morrer, foi acusada de falta de espírito cívico, os cães a acossaram pelas ruas como a uma traidora da pátria.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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