Antonio Carlos de Faria
22/05/2004
Quem assistiu sabe e quem não viu vai ficar sabendo que a maior parte do enredo se desenvolve em uma bela casa de veraneio, à beira-mar. Um homem e uma mulher em torno dos 60 anos desenvolvem nesse cenário um jogo de sedução, que começa pela aversão mútua.
Graças ao isolamento em que são deixados, podem continuar o jogo entre corredores, quartos, salões, até comungarem o aconchego de uma cozinha, na qual preparam panquecas.
Tudo isso sem terem de se preocupar em nenhum momento com a indiscrição de um empregado doméstico, pois na casa imensa não há nenhum. Eis o ponto, no Brasil um filme assim seria inverídico.
Pessoas do mesmo nível social, ou mesmo de posições mais baixas, não sobrevivem sem serviçais. São os resquícios da escravidão a proporcionar uma existência ociosa e ao mesmo tempo angustiada. Aqui, os personagens interpretados por Jack Nicholson e Diane Keaton não teriam tanta privacidade para chegar ao happy ending.
O final tardio da escravidão e o abandono posterior dos cativos é um fenômeno que ainda hoje corrompe as relações sociais entre os brasileiros. Seu efeito mais debatido é o preconceito racial, mas talvez não seja tão universal quanto o desprezo pelo valor do trabalho.
Esse desprezo integra os fatores que criam um vão imenso a separar as camadas mais ricas da imensa multidão de miseráveis. É por ser o trabalho tão pouco valorizado que os brasileiros podem manter ainda hoje seus séqüitos de vassalos.
Atualmente vem ganhando muito destaque a tese de que somente a elevação dos níveis educacionais reduzirá a desigualdade social brasileira. A mais nova panacéia é a idéia de que tudo vai se resolver pela massificação do acesso às universidades. Sejamos sinceros, não será a multiplicação de universitários que mudará essa realidade, tento em vista que o desemprego no país é maior justamente entre os mais qualificados.
O problema fundamental continua a ser a valorização do trabalho mais simples, aquele que exige menos capacitação e no entanto é fundamental para que tudo o mais funcione. É preciso alterar o peso dos fatores que compõem o preço final de produtos e serviços. O valor do trabalho deve ser o principal elemento dessa soma.
Atualmente a degradação do valor do trabalho é tão institucionalizada, a ponto de cinicamente ser apontada como uma das vantagens competitivas do Brasil para atrair novos investimentos. Há até quem se lamente de não termos a mesma sorte da China ou da Índia, onde as condições são ainda piores e, portanto, mais sedutoras.
A crônica começou fazendo uma referência a um filme em que a personagem de Diane Keaton é uma escritora de sucesso. Ao mesmo tempo em que escreve uma nova obra, ainda mantém a casa arrumada, prepara jantares e irradia seu fascínio para homens de diferentes idades.
Se estivesse no Brasil, a personagem gastaria boa parte de seu dia dando instruções a criados, ouvindo queixas de empregados insatisfeitos e, ninguém é de ferro, iria ficar algum tempo ao telefone falando mal da empregada para alguma amiga.
Alguém tem que ceder
"Alguém tem que ceder" está em cartaz há algum tempo e já não se espera que se escreva sobre o filme. Mas há um detalhe que o torna particularmente interessante, algo que inviabiliza uma versão nacional, digamos, e por isso merece alguns comentários.Quem assistiu sabe e quem não viu vai ficar sabendo que a maior parte do enredo se desenvolve em uma bela casa de veraneio, à beira-mar. Um homem e uma mulher em torno dos 60 anos desenvolvem nesse cenário um jogo de sedução, que começa pela aversão mútua.
Graças ao isolamento em que são deixados, podem continuar o jogo entre corredores, quartos, salões, até comungarem o aconchego de uma cozinha, na qual preparam panquecas.
Tudo isso sem terem de se preocupar em nenhum momento com a indiscrição de um empregado doméstico, pois na casa imensa não há nenhum. Eis o ponto, no Brasil um filme assim seria inverídico.
Pessoas do mesmo nível social, ou mesmo de posições mais baixas, não sobrevivem sem serviçais. São os resquícios da escravidão a proporcionar uma existência ociosa e ao mesmo tempo angustiada. Aqui, os personagens interpretados por Jack Nicholson e Diane Keaton não teriam tanta privacidade para chegar ao happy ending.
O final tardio da escravidão e o abandono posterior dos cativos é um fenômeno que ainda hoje corrompe as relações sociais entre os brasileiros. Seu efeito mais debatido é o preconceito racial, mas talvez não seja tão universal quanto o desprezo pelo valor do trabalho.
Esse desprezo integra os fatores que criam um vão imenso a separar as camadas mais ricas da imensa multidão de miseráveis. É por ser o trabalho tão pouco valorizado que os brasileiros podem manter ainda hoje seus séqüitos de vassalos.
Atualmente vem ganhando muito destaque a tese de que somente a elevação dos níveis educacionais reduzirá a desigualdade social brasileira. A mais nova panacéia é a idéia de que tudo vai se resolver pela massificação do acesso às universidades. Sejamos sinceros, não será a multiplicação de universitários que mudará essa realidade, tento em vista que o desemprego no país é maior justamente entre os mais qualificados.
O problema fundamental continua a ser a valorização do trabalho mais simples, aquele que exige menos capacitação e no entanto é fundamental para que tudo o mais funcione. É preciso alterar o peso dos fatores que compõem o preço final de produtos e serviços. O valor do trabalho deve ser o principal elemento dessa soma.
Atualmente a degradação do valor do trabalho é tão institucionalizada, a ponto de cinicamente ser apontada como uma das vantagens competitivas do Brasil para atrair novos investimentos. Há até quem se lamente de não termos a mesma sorte da China ou da Índia, onde as condições são ainda piores e, portanto, mais sedutoras.
A crônica começou fazendo uma referência a um filme em que a personagem de Diane Keaton é uma escritora de sucesso. Ao mesmo tempo em que escreve uma nova obra, ainda mantém a casa arrumada, prepara jantares e irradia seu fascínio para homens de diferentes idades.
Se estivesse no Brasil, a personagem gastaria boa parte de seu dia dando instruções a criados, ouvindo queixas de empregados insatisfeitos e, ninguém é de ferro, iria ficar algum tempo ao telefone falando mal da empregada para alguma amiga.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas E-mail: acafaria@uol.com.br |