Pensata

Antonio Carlos de Faria

19/06/2004

O jogo da ilusão

Algumas semanas fora e no retorno parece que tudo continua no mesmo. Pelo menos o assunto dominante permanece sendo o salário-mínimo, o que não passa de mais uma comprovação de que vivemos sob o jugo da aparência, do ilusório. Aquilo que os hinduístas chamam de maia e que o cinema propôs como Matrix.

Sim, discutir o salário-mínimo da forma como estamos vendo é o exercício da ilusão. Tudo nos leva a crer que o mínimo deste ano está sendo definido pelos debates no Congresso e os embates contra o governo. Pura aparência.

Vamos encurtar o jogo e lembrar que no ano passado o governo lamentava não poder aumentar a proposta do mínimo, pois ela havia sido definida pelas limitações geradas na gestão anterior, em 2002.

Não era retórica. É assim que funciona, a proposta é desenhada sempre um ano antes, quando o governo elabora sua previsão orçamentária. Ali ele decide quanto vai aplicar para cobrir o déficit da Previdência ou para cumprir outras obrigações, sendo que a principal tem sido eleita como o pagamento do serviço da dívida.

Portanto o mínimo que agora causa tantos debates e frisson político foi delineado pelas decisões assumidas em 2003. Decisões que os deputados e senadores puderam acompanhar e calcular em seus reflexos.

A maior parte dos políticos que hoje aparecem como opositores da proposta do governo apoiou e aplaudiu as medidas adotadas em 2003. Na época, foram elogiadas por eles como demonstração de responsabilidade. Agora, fazem cena dizendo que uma de suas conseqüências, a restrição do salário-mínimo, é demonstração de insensibilidade social.

Estamos na época do planejamento do próximo ano. É agora que se vai definir quanto será economizado para que se possa administrar a dívida monstruosa e quanto irá se aplicar na construção de um mínimo que permita uma vida mais digna.

Combinar as duas exigências e ter sucesso não é simples, mas esse é o desafio de um governo que se elegeu prometendo resgatar dívidas históricas. E a principal dívida não é de forma nenhuma a que foi contraída com as bancas de prestamistas, mas a que nos torna campeões mundiais de concentração de riqueza.

Seria interessante que os deputados e senadores se envolvessem mais nesse debate. Duvido que teríamos a oportunidade cômica de vermos velhos defensores da ortodoxia propondo redução do pagamento da dívida em nome de mais ousadia social.

Continuarão a elogiar todos os cortes e sacrifícios que o governo vem propondo para manter o Brasil de bem com o mercado financeiro. Depois irão cobrar resultados que não obtiveram enquanto foram os gestores do poder.

Ora, chega de prestidigitadores, mágicos da ilusão. Ninguém mais tem paciência para esse espetáculo, a não ser que seja feito em seu ambiente natural, por profissionais que respeitem a dignidade de um picadeiro de circo.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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