Pensata

Antonio Carlos de Faria

25/07/2004

Milagre dos peixes

O táxi corta a garoa que entristece o Rio e o motorista memoriza a direção desejada pelo passageiro, antes de começar a falar.

— A chuva não combina com esta cidade. O senhor concorda? Que bom. Há pessoas que gostam de dias chuvosos, gente esquisita, o senhor sabe. Pois não é que acabei de deixar uma pessoa assim, agora mesmo. Disse que adora chuva e também os cemitérios. Deus me livre! Eu perguntei por que ela gosta de cemitérios e me respondeu que é deles que se vai para o céu. Veja só. Ela confunde cemitério com aeroporto.

— As pessoas querem acreditar em algo para viver, não é doutor? O que? O senhor não é doutor, é jornalista. Está bem, tudo certo. Estamos em profissões assemelhadas, não? Jornalistas e taxistas estão sempre vendo e ouvindo coisas esquisitas. Outro dia mesmo, uma passageira veio me perguntar se eu já fiz a dança do acasalamento para minha mulher.

— O senhor não entendeu. Eu repito, dança do acasalamento. Eu achei esquisito. A passageira insistiu e falou que está na moda, que eu precisava experimentar. Ora, veja se tem cabimento, só porque está na moda eu vou experimentar? Fala sério! Imagine eu dançando na frente da patroa! É capaz de ela engasgar com tanta risada.

— O senhor já fez essa tal dança do acasalamento? Não? É claro que não. Isso é coisa de gente esquisita. Igual a um amigo taxista que sempre diz que vai pescar no final de semana. Nas segundas-feiras, ele traz uma quantidade de peixes e distribui para os colegas. Parece até cena bíblica, o milagre da multiplicação. Não falta nem o pão, o senhor vai ver.

— Domingo passado, eu aceitei o convite e fui com ele pescar. Descobri o segredo. Ele não pesca coisa nenhuma. Ele faz é sanduíches de pão com ovo e leva uma porção num cesto, ainda de madrugada na praia de Guaratiba, quando os pescadores vêm com os barcos carregados da pescaria.

— O senhor não está entendendo? Eu explico. Ele dá os sanduíches para os pescadores famintos que, em troca, lotam o cesto dele com peixes bonitos. Bela pescaria! Isca de pão com ovo! Tem gente capaz de tudo.

— O senhor gosta de pão com ovo? Eu não gosto e não teria essa idéia de trocar por peixes. Eu nunca iria acreditar que um pescador fosse capaz de fazer essa troca. O senhor trocaria? Fala sério! Quer dizer que o senhor trocaria... Mas o senhor não é pescador, é jornalista, não pode trocar peixe por pão com ovo. Trocaria pelo quê? Por uma crônica? E crônica enche a barriga?

— Chegamos. São quinze reais. Se quiser, pode me pagar com uma crônica. Seria mais uma coisa esquisita nessa vida de táxi. Só não aceito pão com ovo.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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