Pensata

Antonio Carlos de Faria

16/08/2004

A conservadora

Jogo de sinuca, no bilhar Guanabara, exige concentração. Foi o que os amigos disseram ao Almeida, quando ele começou a se gabar de sua mais recente conquista. Não que a turma rejeitasse uma boa conversa, mas evitavam o exibicionismo do rapaz.

O Almeida ignorou a advertência e continuou a narrativa.

-É uma graça de garota, conservadora, amante das tradições. Ela até usa meias três-quartos. Iguais às que a gente via, nos tempos de colégio.

Um rumor percorreu o entorno da mesa, animada por homens casados que admitiam o solteirão do Almeida em deferência à amizade da infância.

-Imaginem. Uma mulher conservadora. Até bebe grapete... Mas sabem do que ela gosta mesmo, no duro? Fico até emocionado em contar...

Os amigos passaram a dar tacadas mais vigorosas, para ver se o choque entre as bolas abafava a voz do Almeida. Ele nem percebia a atmosfera em seu entorno. Estava embevecido, falava para si mesmo.

-Eu até me comovo ao pensar no que ela gosta... Ela ama fazer cafuné. Isso mesmo. Cafuné. Que mulher hoje em dia tem esse prazer? Isso é coisa rara, um achado. Um achado!

Um dos jogadores pediu licença para ir ao banheiro. Outro foi procurar o garçom, que ainda não havia trazido as cervejas. O Almeida nem se deu conta. Olhou fixamente para algum ponto além das janelas do salão e perguntou:

-Vocês já tomaram banho de ofurô... a dois?

Os amigos remanescentes trocaram olhares de pânico. O Almeida entendeu o silêncio como manifestação de curiosidade.

-Pois é. Minha namorada, além de cafuné, adora esses exotismos orientais. Veio me dizer que o banho em um ofurô se aproxima do aconchego do útero materno. Eu fico lá em posição fetal, na água quentinha, relaxando, enquanto ela coloca as essências florais. Outro dia, falou que quer ser minha gueixa. Vejam só como ela é conservadora.

Rapidamente, disseram que era a vez do Almeida entrar no jogo. Até deixaram bolas fáceis para que ele ficasse encaçapando. A coisa funcionou. Finalmente mudo, foi colocando uma bola atrás da outra. Mas, mesmo assim, mantinha uma expressão distanciada, como alguém que se delicia com um pensamento antes de contá-lo. Só voltou a abrir a boca, quando já havia vencido o jogo.

-Ainda bem que estamos terminando. Eu não agüento ficar tanto tempo inclinado sobre essa mesa. Dói a coluna. O que me salva é que a minha namorada adora fazer massagens. É especialista no estilo tailandês...

Os jogadores resolveram encerrar a noite. Dispensaram até a tradicional saideira. Todos queriam debandar rapidamente. Na despedida, o Almeida notou que alguns tinham os olhos vermelhos e úmidos.

-Vocês andam muito estressados. Quando estou assim, minha namorada me faz um escalda-pés. Ela ama as terapias tradicionais...
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca