Pensata

Antonio Carlos de Faria

03/10/2004

A angústia de cada um

Ao sentir o afloramento da angústia, a Glorinha não tem dúvidas. Vai sempre ao shopping, onde compra um acessório, algo extremamente essencial, com o poder de tornar sua vida menos faltosa. Daquele tipo que logo depois é apenas mais um item supérfluo dentro de casa.

O Leopoldo, quando fica angustiado, procura encontrar a cara metade. Já a encontrou algumas vezes, tanto que em alguns casos paga pensão decidida em Justiça, comprovando o quanto a tal metade era cara. Hoje, procura opções mais baratas, mas continua pagando.

Quando o Joselito se angustia, toma um porre. Para ele, não cola essa história de que copo vazio está cheio de ar. Copo vazio deixa o Joselito angustiado. Afinal, não vê graça em apenas respirar.

O Godofredo é zen, ou pelo menos está se esforçando para ser. Quem sabe assim arranja um jeito de neutralizar a maldita angústia que o consome. Ele aprendeu técnicas de meditação e relaxamento. Sua esperança é encontrar um mestre iluminado que lhe revele o sentido da dor. Por enquanto só encontrou paliativos, mas ele não desiste.

A Luísa já passou dessa fase. Ela não busca mais o mestre. Já o encontrou e toda semana vai reverenciá-lo em um culto que a deixa em êxtase. A sensação dura algumas horas. Quando a angústia volta, ela começa a falar silenciosamente com o mestre. Conversa bastante, para ver se a maldita passa.

O Júlio arranjou um jeito de lucrar com a angústia. Quando ela bate, ele pinta um quadro. Quanto maior for a bendita, mais prazer ele destila com os pincéis e as tintas. A energia flui dos cantos mais escuros para a claridade da tela.

É certo que ele ainda não vendeu nenhum quadro. Seu lucro não é monetário. Por enquanto é um ganho pessoal, intransferível. Uma sensação de gozo que perdura na obra artística.

Ele já tentou explicar seu método de relação com a angústia para os amigos. Logo percebeu que esse não é um conhecimento que se possa dividir, mesmo com quem se goste. Melhor do que falar, é mostrar seus quadros.

Alguns amigos não entendem o que Julio pinta. Eles ficam angustiados vendo seus quadros. O pintor se angustia quando os amigos ficam assim. Aí ele pinta outras telas.

De uns tempos para cá, o Júlio também resolveu escrever crônicas, algumas vezes poesia. Um crítico, que não entendeu nada, disse que o texto do Júlio era hermético como uma pintura abstrata. O pintor-cronista-poeta ficou maravilhado.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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