Pensata

Antonio Carlos de Faria

18/10/2004

O futuro de uma cueca de listras

O teatro da escola está repleto de alunos do ginásio. Os garotos acompanham com olhos enormes cada movimento, cada palavra do padre pesquisador de fenômenos paranormais.

O sacerdote vai tecendo argumentos científicos que demolem tudo o que chama de superstição.

Trata-se de um homem inteligente. Sabe que nos jovens corações que o ouvem se enraíza uma semente de conflito em relação a qualquer religiosidade. A fé não precisa ser obscura, ele repete. Para consolidar sua argumentação, convoca um voluntário a se submeter a uma sessão de hipnose.

O garoto voluntarioso que se apressa em ir até o palco nem se lembra de que naquele dia está usando a odiada cueca de listras que ganhou de uma tia. Depois de ouvir duas ou três invocações, fica semiconsciente.

Nesse estado, segue as sugestões do hipnotizador. Vira-se de um lado para outro, inclina-se para trás e para frente até que suas calças se desarranjam ligeiramente e revelam o terrível segredo.

Nem os risos da platéia o despertam, o que é uma consagração ainda maior para o padre que, ao contar até três e estalar os dedos, liberta o hipnotizado da submissão. Assim, encerra-se a preleção, pois o sinal para o reinício das aulas já soa.

Os demais alunos não arredam pé do teatro, mesmo com o terceiro toque fatal que precede a chamada nas salas de aula. Todos esperam com avidez para ver como será o despertar do hipnotizado.

Acordou com o padre perguntando pelo seu nome e querendo saber se ele se lembrava de algo. Não, não se recordava de nada sobre os últimos minutos. Com naturalidade, como alguém que apenas se ausentara para ir à padaria, ajeitou as calças. Percebeu o afloramento da cueca de listras, mas teve presença de espírito para não a transformar em ator principal de uma farsa involuntária.

Esse desempenho neutralizou a sanha dos colegas, que esperavam se divertir um pouco mais com um embaraço de sua parte. O padre insistia em perguntar por onde ele teria estado durante a hipnose e, diante da ausência de respostas, pôde concluir que o inconsciente era um manancial de riquezas inexploradas. Um universo de onde brotam as fantasias e, particularmente, as ilusões humanas.

Mesmo grogue, o menino registrou com interesse essa descrição sobre a fonte do ilusório. Mais tarde foi aprender como as ilusões, inclusive a única reverenciada pelo padre, tentam tornar suportável a angústia de se desejar algo que não há. Um desejo que nos torna únicos e especiais, posto que as outras formas de vida apenas vivem, consumindo-se até o fim inevitável.

Essas idéias, naquele dia, ainda eram tênues formações, sem merecer ser centro de atenção do menino. Esse era então um privilégio ocupado pela cueca de listras.

Dela, o menino conseguiu se livrar pouco depois. Quanto às ilusões, o processo de libertação vem sendo mais árduo e me exige novos esforços todos os dias.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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