Pensata

Antonio Carlos de Faria

30/05/2002

Rito de Passagem

Quem me contou esse caso foi um amigo, professor de universidade pública, que há um ano perdeu a mulher, vítima de morte prematura. A circunstância, acredito, universaliza o interesse pelo relato, posto que prematuras são quase todas as mortes.

Formavam um casal intenso em identificações, entre elas uma sólida descrença acerca das idéias místicas. Sua mulher exercia o ceticismo com peculiar refinamento e tinha por hábito visitar cemitérios das cidades pelas quais viajava.

Quando questionada a respeito, dizia ser um exercício para lembrar que a existência é finita. E se há prazo de validade para a vida -embora essa data não conste na embalagem-, há urgência em dar sentido a cada um de seus segundos.

O professor não partilhava dessa urgência e sorria sempre quando ouvia seus fundamentos, encantado com o humor de sua mulher.

Também não comungava do mesmo entusiasmo pelas incursões, acreditando que as cidades dos vivos têm mais riquezas do que as cidades dos mortos.

Mesmo assim, conta ter aprendido muito com esses passeios, durante os quais costumavam conversar sobre as impressões que sentiam. Dois deles foram particularmente interessantes.

No Colón, em Havana, pôde ver aquilo que considerou o retrato mais preservado da sociedade pré-socialista. Mausoléus majestosos, em absoluto contraste com a pobreza asséptica do exterior.

Na Recoleta, túmulos elegantes, ao lado de um shopping, constituem uma das vistas mais valorizadas de Buenos Aires, situação que lhe pareceu um intrincado presságio do destino nacional.

Mas essas são viagens que não poderão mais fazer em comum.

Solitário, na última semana, meu amigo foi ao São João Batista, o cemitério da zona sul do Rio, levando rosas vermelhas, as preferidas de sua mulher.

Não sabia claramente o que estava fazendo ali. Desde o enterro não havia voltado, procedimento compreensível, pois continuava acreditando que nada dela restara, a não ser as lembranças.

Antes de ir a seu túmulo, resolveu homenageá-la com um ritual que só os dois entenderiam. Fez um passeio pelo cemitério de sua própria cidade. Andou como se estivessem novamente juntos.

Diante das lápides de Nelson Rodrigues e de Tom Jobim, trocaram impressões sobre artistas que admiravam. Da parte alta, viram o burburinho de Botafogo e comentaram, divertidos, que havia algo de cômico naquela constante agitação urbana.

A caminhada terminou com o professor depositando as flores sobre uma laje que tem apenas um nome e a inscrição 1958-2001.

Ao voltar para seu carro, olhou para trás e, mesmo ouvindo que havia urgência, não conseguiu sorrir.




Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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