Pensata

Antonio Carlos de Faria

27/12/2002

O saxofonista do Ano Novo

Todo dia ele se instala numa das calçadas da avenida Rio Branco e começa a esganiçar um saxofone, causando angústia aos passantes e aos camelôs que ali fazem ponto.

Sua peça de resistência é algo que lembra os acordes de "Carinhoso". O saxofonista não deve acreditar em vida após a morte, visto que não dá a mínima ao sofrimento póstumo de Pixinguinha.

Com certeza trata-se de um autodidata, pois é impossível imaginar que esteja aprendendo tortura auditiva com outra pessoa. Seria maligno demais.

Toca à espera de doações de suas vítimas. A caridade supera o reconhecimento artístico e ele acaba recebendo alguns trocados.

Ao perceber que a colheita está baixa, o rapaz apela e introduz em seu repertório trechos dos hinos de times cariocas. Começa sempre pelo do Flamengo, mas até o América é contemplado.

A estratégia dá resultado, pois sempre há um torcedor circulando pelas imediações. O apaixonado pela bola acaba se sentindo compensado ao encontrar uma coisa pior do que a situação do futebol do Rio.

Assim, o saxofonista segue perseverando e talvez chegue a algum nível de qualidade em um futuro incerto. Isso só depende dele e o rapaz parece determinado.

Ele não adia o sonho. De algum jeito, eliminou de sua vida as coerções culturais que se cristalizam em autocensura. É dono de uma enorme cara-de-pau e não está nem aí para julgamentos, como este, por exemplo, que poderiam atrasá-lo na busca de seu desejo.

Enquanto executa - literalmente - suas músicas, ao seu lado passam centenas de poetas que não publicam poemas, contistas que não contam um conto, velejadores que não navegam nem em canoas, cozinheiros que não fazem nem o arroz-com-feijão, jardineiros que só plantarão flores quando se aposentarem de seus dias tediosos nos escritórios, amantes que adiam o amor, pois antes é preciso aprender aquilo que está nos livros e nas sessões de psicanálise.

O saxofonista da Rio Branco afronta a todos que protelamos o risco do ridículo, na inútil esperança de deixar de sê-lo.

Na passagem para 2003, quero ouvi-lo tocar "Feliz Ano Novo". Deve ser uma coisa horrível demais, como um trago de bebida forte que a gente engole para ganhar coragem.



Por motivos de viagem, esta coluna só volta a ser publicada no dia 16 de janeiro.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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