Pensata

Antonio Carlos de Faria

30/01/2003

A escola do pão-duro

No Rio, há quase cem anos, um mendigo ficou famoso ao morrer, pois se descobriu que ele tinha casas e depósitos em bancos. O espertalhão havia passado a vida pedindo pão duro e esmolas pelas ruas da cidade. Em homenagem bem-humorada à sua memória, criou-se na época um novo adjetivo: pão-duro.

Sua esperteza fez escola. Hoje, o Brasil, país que tem as mais extensas áreas agricultáveis do planeta e cujas vendas externas são em grande parte compostas por produtos agrícolas, quer convencer o mundo de que precisa ajuda para que sua população carente não passe fome.

O povo carioca candidamente ajudava o pão-duro por desconhecer a verdadeira situação do falso mendigo. Pensar que os governos e instituições estrangeiras farão o mesmo em relação ao Brasil é acreditar num surto de ingenuidade.

O chamado mundo rico está longe de ser generoso, e, além disso, conhece os dados econômicos e sociais brasileiros. Por exemplo, sabe da análise feita pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que aponta que a economia do país já atingiu, pelo menos desde os anos 80, escala suficiente para que não existam mais bolsões de pobreza absoluta. Em resumo, não é preciso esperar que o bolo cresça mais para dividi-lo.

Se ainda há pessoas no país que passam fome, não é por falta de produção de comida ou capacidade de ampliá-la. O que o Brasil não tem é uma digna distribuição da riqueza que ele mesmo produz.

Esse não é problema externo, é assunto para ser resolvido dentro de casa. Exigir dos outros países maior abertura aos nossos produtos é necessário, mas não é a solução para o fato de que aqui parte do povo não pode comprá-los. O Brasil já provou que crescimento econômico não é sinônimo de distribuição de riqueza.

Por outro lado, auxílios internacionais na forma de doações são necessários para países que ainda não construíram uma economia de porte. No caso brasileiro, acabam até por ter um efeito cruel ao contribuir para a acomodação ao atual modelo.

Mudar o modelo não é fácil, mas também não é impossível. Em economias que atingiram um grau de dinamismo e de acumulação como a do Brasil, distribuir renda pode dispensar cenas de dramaticidade histórica.

Uma fórmula para essa equação foi aprovada pelo Senado brasileiro, em 1991, criando um programa de renda mínima para a população, que deveria funcionar como uma espécie de imposto de renda negativo. Quem tem renda paga. Quem não tem, recebe.

A lei, depois de anos sendo obstruída na Câmara dos Deputados, está prevista para entrar em vigor a partir de 2005. O autor da idéia é o senador petista Eduardo Suplicy, que até agora foi pouco ouvido pelo governo federal que ele ajudou a eleger.

Ressentimentos de campanha podem provocar uma perda enorme de tempo na busca de soluções realmente eficazes contra a miséria. O senador não merece a Sibéria apenas por ter ousado disputar a pré-campanha com Lula.

As soluções que se dizem buscar no combate à fome e à miséria já foram mais do que debatidas na última década. Entre os frutos desse debate estão projetos que derivaram da idéia original de Suplicy, como o Bolsa Escola.

Um programa de renda mínima tem efeitos mais abrangentes do que iniciativas filantrópicas. Age mais profundamente do que doações nacionais ou vindas do exterior. Se estivesse vivo, o falso mendigo pão-duro com certeza seria contra a idéia, pois colocaria em risco a sua profissão.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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