Antonio Carlos de Faria
27/02/2003
-Por que tanta preocupação? Tá com medo do tráfico, da violência? -perguntou o recém-chegado.
-Isso tudo tem solução, faz parte da conjuntura. Eu estou é pensando no medo interior.
-Medo interior? Que história é essa? Não me diga que você, nessa idade... Olha lá, hein...
-Não é nada disso, você me conhece muito bem. Estou falando do medo íntimo que todos temos e do qual nunca falamos.
-Pera lá. Eu sou homem, com agá maiúsculo, e não tenho medo íntimo nenhum.
-Tá bom, fica com bravata. O Magalhães fazia a mesma coisa até a semana passada e acabou enfartando. Agora até pode falar, mas ainda não saiu do hospital.
-Eu soube do infarto. Você foi visitá-lo?
-Fui e aí é que ele me contou do medo interior, a causa do piripaque que quase o matou.
-Como assim?
-Sinistro. O Magalhães chegou em casa depois do trabalho e foi logo tomar um banho para tirar o ranço do dia. Mas aí, na hora de passar o xampu, veio o medo interior. Ele não suporta ficar sem enxergar. Mesmo assim, ficou com os olhos cobertos de espuma. Nesse momento, sentiu duas mãos sobre seus olhos e ouviu uma voz soturna perguntando: adivinha quem é?
-Quem era? Quem era?
-O Magalhães logo pensou que era o espírito de uma tia, morta faz uns vinte anos. Teve um troço ali mesmo no boxe e caiu duro. A Silvinha, a namorada do infeliz, ficou em pânico. Ela tinha entrado com a chave reserva que pegou num outro dia. Coitada, queria apenas fazer uma surpresa, mas quase matou o rapaz. Teve que chamar a ambulância e acompanhar a vítima até o hospital.
-Que história tenebrosa. Preciso tomar algo, vou pedir um uísque.
-Agora você está me entendendo. Estou preocupado com coisas que vão além da realidade externa. Estou pensando no meu medo interior.
-É qual é o seu medo interior?
-Tenho até vergonha de dizer.
-Agora que começou, conta.
-Na hora de dormir, não consigo deixar os pés descobertos.
-Você tem medo de que algum fantasma venha puxá-los? Talvez a tia do Magalhães?
-Respeite meu materialismo histórico. Não acredito em fantasmas. Meu medo é que algum canibal resolva começar um banquete por ali.
-Só se for um que não tenha olfato ou que goste de gorgonzola. Isso é medo besta. Terror mesmo, vou confessar, é o que eu sinto.
-Então você também admite o seu medo íntimo... Vamos, confesse tudo.
-Eu tenho medo de sexo oral.
-Ativo ou passivo?
-Incisivo.
O medo interior
Os dois amigos marcaram o encontro para o Cervantes, em Copacabana, no final da tarde da última segunda-feira, dia em que os traficantes infernizaram novamente a vida do Rio. Quando o segundo chegou, o primeiro estava tão cabisbaixo, tão encurvado em seu abatimento, que quase tinha a testa apoiada no copo de chope.-Por que tanta preocupação? Tá com medo do tráfico, da violência? -perguntou o recém-chegado.
-Isso tudo tem solução, faz parte da conjuntura. Eu estou é pensando no medo interior.
-Medo interior? Que história é essa? Não me diga que você, nessa idade... Olha lá, hein...
-Não é nada disso, você me conhece muito bem. Estou falando do medo íntimo que todos temos e do qual nunca falamos.
-Pera lá. Eu sou homem, com agá maiúsculo, e não tenho medo íntimo nenhum.
-Tá bom, fica com bravata. O Magalhães fazia a mesma coisa até a semana passada e acabou enfartando. Agora até pode falar, mas ainda não saiu do hospital.
-Eu soube do infarto. Você foi visitá-lo?
-Fui e aí é que ele me contou do medo interior, a causa do piripaque que quase o matou.
-Como assim?
-Sinistro. O Magalhães chegou em casa depois do trabalho e foi logo tomar um banho para tirar o ranço do dia. Mas aí, na hora de passar o xampu, veio o medo interior. Ele não suporta ficar sem enxergar. Mesmo assim, ficou com os olhos cobertos de espuma. Nesse momento, sentiu duas mãos sobre seus olhos e ouviu uma voz soturna perguntando: adivinha quem é?
-Quem era? Quem era?
-O Magalhães logo pensou que era o espírito de uma tia, morta faz uns vinte anos. Teve um troço ali mesmo no boxe e caiu duro. A Silvinha, a namorada do infeliz, ficou em pânico. Ela tinha entrado com a chave reserva que pegou num outro dia. Coitada, queria apenas fazer uma surpresa, mas quase matou o rapaz. Teve que chamar a ambulância e acompanhar a vítima até o hospital.
-Que história tenebrosa. Preciso tomar algo, vou pedir um uísque.
-Agora você está me entendendo. Estou preocupado com coisas que vão além da realidade externa. Estou pensando no meu medo interior.
-É qual é o seu medo interior?
-Tenho até vergonha de dizer.
-Agora que começou, conta.
-Na hora de dormir, não consigo deixar os pés descobertos.
-Você tem medo de que algum fantasma venha puxá-los? Talvez a tia do Magalhães?
-Respeite meu materialismo histórico. Não acredito em fantasmas. Meu medo é que algum canibal resolva começar um banquete por ali.
-Só se for um que não tenha olfato ou que goste de gorgonzola. Isso é medo besta. Terror mesmo, vou confessar, é o que eu sinto.
-Então você também admite o seu medo íntimo... Vamos, confesse tudo.
-Eu tenho medo de sexo oral.
-Ativo ou passivo?
-Incisivo.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas E-mail: acafaria@uol.com.br |