Pensata

Antonio Carlos de Faria

06/03/2003

Feijoada com lasanha

Alguém que não teme a própria morte é capaz de tudo. Foram os últimos pensamentos de Jonjoca antes de entrar naquele restaurante a preço fixo do Catete, na Quarta-Feira de Cinzas.

O vazio que sentia na alma exigia medidas drásticas. Em vez de se embebedar, queria refletir sobre sua grande decepção e também punir a própria ingenuidade. Nenhum lugar era melhor do que aquele.

Sem garçons nem limite de consumo, a espelunca anunciava o cardápio como se fosse um desafio. Tudo o que você conseguisse comer por apenas R$ 10, prometia a tabuleta.

Enquanto se servia de feijoada com lasanha, o rapaz lembrou novamente os últimos acontecimentos de sua vida. Deixou cair uma lágrima no suco de caju, especialidade já incluída no preço do bufê.

O Carnaval havia terminado e ele acabara de sair da casa de Deolinda, a quase-namorada que arranjara nos ensaios do bloco.

Não chegaram a andar de mãos dadas em público, mas trocaram beijos fogosos nos cantinhos escuros da quadra onde o bloco se reunia. Se não houve fato consumado, pelo menos se estabeleceu uma perspectiva.

Eram modernos e o pierrô não chegou a imaginar que já seria o único homem na vida da colombina. Só não desconfiou que era apenas o outro.

A descoberta aconteceu porque ele fora imprevidente. Depois de passar a última noite da festa com a moça, decidiu levar-lhe rosas.

Voltou ao prédio ao qual a acompanhou no final da madrugada. O zelador perguntou se preferia deixar as flores na portaria ou entregá-las pessoalmente. Pleno de felicidade, resolveu ir.

Era meio-dia e imaginou a surpresa que iria causar. Tocou duas vezes a campainha. A porta foi aberta por um sujeito trajando uma samba-canção.

Com as rosas despencando das mãos, Jonjoca perguntou se aquela era a casa de Deolinda. "Minha mulher está dormindo", foi a resposta mal-humorada que recebeu.

O entregador de flores pediu desculpas e disse que viera apenas deixar um buquê. O marido rosnou que não iria dar gorjeta. Jonjoca entregou as flores e foi embora.

Isso havia acontecido há uma hora. Agora, ele remoia os fatos diante do terceiro prato de uma mistura que chamou de feijanha.

Sua decepção amorosa só rivalizava com a profunda indigestão que começou a sentir. Precisava tomar alguma decisão. Resolveu procurar bicarbonato.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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