Pensata

Antonio Carlos de Faria

27/03/2003

Boas maneiras no bairro Peixoto

O metrô, apesar de maculado por uma das recentes tragédias do Rio, vem desde os anos 70 figurando como um elemento civilizador na história da cidade.

É, por exemplo, um dos poucos lugares onde as pessoas não falam alto, ao contrário dos cinemas e teatros, onde parte do público insiste em disputar o estrelato com os atores.

Mal comparando, um vagão do metrô funciona como uma unidade móvel da escola de boas maneiras da madame Poças Leitão.

Talvez por isso, certas transgressões cotidianas não são toleradas nesse ambiente. Outro dia, um rapaz metido em um terno amarrotado ia jogando o seu jornal no chão, conforme avançava na leitura. Em um desfile carnavalesco, seria dele a alegoria do conflito entre a civilização e a barbárie.

O desplante causou reações de ódio nos outros passageiros. Um deles, com quase dois metros e perfil de boxeador encarou o mal-educado. "Sabe qual é a diferença entre você e um porco? Um dos dois animais pelo menos serve para comer."

Apesar dos aplausos da platéia, não houve tempo para a continuidade do espetáculo, pois o armário ambulante teve que descer na estação Botafogo.

Tão logo o perigo passou, o rapaz do jornal não se fez de rogado. Com o rosto por trás das folhas, falou alto, em tom de desafio. "Ainda bem que ele desceu. Não sabe com quem estava mexendo. Sou da turma do Beira-Rio."

Para tornar a revelação mais ameaçadora, descartou outra página do diário, enquanto o trem seguia para Copacabana.

"Não seria o Beira-Mar, meu filho?", questionou uma velhinha, visivelmente intrigada. Sem olhar para a senhora, como se estivesse fazendo uma concessão, o rapaz falou com desdém. "Perto do Beira-Rio, esse outro é pinto."

"Você é um ignorante. Tem dez segundos para recolher o lixo", ordenou furiosa uma valentona que veio do fundo do carro, atraída pela confusão.

"Isso aqui não é lixo, é jornal. E não me dê ordens, pois já disse que sou da turma do Beira-Rio", foi a resposta.

"Quem é esse tal de Beira-Rio?", questionou a moça, subitamente desconfiada de que tudo fosse armação de um canal de TV. Em algum canto poderia haver uma câmera oculta, pois sempre há uma, nesses tempos de síndrome de big brother.

"Com essa pergunta, você atestou quem é o ignorante por aqui. Não quer aproveitar pra ler um jornalzinho? É só catar esse que estou deixando", provocou o agente da cizânia.

A situação só não degringolou ainda mais porque o trem abriu as portas na primeira estação de Copacabana e a maior parte dos passageiros desceu. Restaram o sugismundo e um sujeito que, calado, havia assistido a tudo.

"Afinal, quem é o Beira-Rio?", quis saber o tal silencioso, enquanto o trem seguia para a última estação.

"Ora, é o meu time de futebol de praia, aqui mesmo do bairro Peixoto. Por falar nisso, quer ler um jornal?"
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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