Pensata

Antonio Carlos de Faria

22/05/2003

O eixo do mundo

As mesas no Cosmopolita têm um ar atemporal, que faz os bate-papos se revestirem de uma modéstia necessária. Afinal que urgência pode haver em qualquer assunto diante dos veneráveis 76 anos daquele botequim da Lapa?

Urgente é pedir mais um chope ao garçom, enquanto o olhar se perde nas copas das árvores mais altas do Passeio Público. Torna-se legítimo imaginar que sejam também as mais antigas daquele jardim, o primeiro parque de lazer da cidade, construído no final do século 18 como um sinal da vocação carioca.

Com o copo na mão, por que não dirimir outra dúvida -antiga, quase obsessiva? Se o mundo ainda é mundo, deve ser possível ver os Arcos da Lapa, a partir da porta do Cosmopolita, no sentido contrário ao do Passeio Público.

Sim, eles ainda estão lá -os arcos finalizados como aquedutos, em 1750. Ao vê-los, confirmo que o eixo do mundo continua o mesmo, pelo menos nos últimos três séculos.

Entre as duas extremidades do eixo, entre os Arcos e o Passeio, o Cosmopolita é uma cápsula a viajar pelo tempo. Por hipótese imaginemos que o ano é 2003 e a cidade do Rio de Janeiro está conflagrada, pois parte dos moradores de seus guetos resolveu se rebelar.

Observem a cena. Numa das mesas do botequim, o debate é intenso. Alguém lembra que todo homem é inimigo da civilização. Menos os filisteus, outro rebate, menos os filisteus que só sobrevivem como ratos da cultura, portanto não podem ser contra ela. O que faz falta é o major Vidigal, assevera um terceiro, causando espanto nos demais.

Afinal todos sabem que o Vidigal é aquele chefe de polícia célebre por seus métodos heterodoxos -mestre da escola de truculência que até hoje vigora no país. O major marcou época quando o Rio foi a única cidade fora da Europa a ser a sede de um reino europeu.

Lá pelos idos de 1810, a bandidagem tremia só de ouvir falar o nome do Vidigal. Uma descrição bem humorada de suas façanhas ficou imortalizada no Memórias de Um Sargento de Milícias, escrito por Manuel Antônio de Almeida, em 1852.

No lugar do Vidigal, agora temos um garotinho, conclui um outro membro do grupo de discussão do Cosmopolita. Não nos esqueçamos que estamos na máquina do tempo, então é preciso estabelecer referências.

Na época do debate que presenciamos, Garotinho é o nome do secretário de Segurança Pública, mas também, por tradição longínqua, é o modo como os cariocas chamam o copo pequeno de chope, aquele ideal para o eterno verão do Rio, pois dura menos e assim não esquenta.

Um tratado sobre o chope garotinho teria que necessariamente começar pela contradição entre seus apreciadores. De um lado, os que não querem se aprofundar nas lides alcoólicas e desejam apenas um contato superficial. De outro, os bebedores de longo curso, que desejam ter sempre o líquido gelado.

Mas no início dessa crônica não dizíamos que as mesas do Cosmopolita têm um ar atemporal. Então, como conciliar essa proposição com a outra logo seqüente de que o botequim é uma cápsula do tempo?

Eu, que estou escrevendo a cena do debate em que são lembrados o Major Vidigal e o garotinho -e realmente não é significativo diferenciar se estão falando do secretário ou do chope pequeno-, pareço cair em contradição. E além disso, a velha dúvida obsessiva toma conta de mim.

É preciso que me levante dessa mesa e vá até a porta do Cosmopolita. Olho para as árvores mais altas do Passeio Público e lentamente me volto, querendo me certificar de que na direção oposta está a outra extremidade do eixo do mundo.

Enquanto faço o movimento com todo o cuidado para não romper a harmonia do início da noite, percebo que bem próximo a mim, atravessando a rua, uma pessoa me olha fixamente. Parece que vem me contar algo novo. Intimamente fico preocupado, pois ela pode me dizer que os Arcos não estão lá.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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