Pensata

Antonio Carlos de Faria

12/06/2003

Reinventando Neruda

Dia dos Namorados. Numa mesa do Villarino, um homem lê o pequeno livro que acaba de retirar de um embrulho de presente. "Cien Sonetos de Amor", de Pablo Neruda, edição original, garimpada em um sebo. O garçom se aproxima e o leitor pede um uísque.

O homem solitário saboreia com avidez os versos que Neruda escreveu em 1959. Quem o vê não desconfia que a leitura só há pouco tempo se tornou um de seus prazeres. O livro nem era para ele. Era para uma ex-namorada, um presente que ficou sem futuro e que ele resolveu se dar.

A namorada foi embora, mas ficou o Neruda que ele aprendeu a admirar por causa dela. Nos encontros dos dois, ambos aprenderam algumas coisas. Ela, depois de apreender o que estava disponível, decidiu que era hora de ir.

A iniciação a Neruda aconteceu aos poucos, durante momentos íntimos em que ela lhe recitava as poesias do chileno. Quando os versos começaram, ele fez um gracejo, manifestando que sua natureza rude não era suscetível a tais sutilezas. Ela sorriu e pediu para ele ser paciente, pois iria ouvir algo sobre a carnalidade do mundo.

O namoro terminara há alguns meses, mas ele continuou apaixonado. Não por ela, mas pela poesia. Não por uma mulher, mas pela mulher. O leitor solitário aprendera com o poeta que objeto da paixão pode ter várias faces.

A leitura no Villarino não é um acaso. Nos anos 50, Neruda visitou o pequeno bar do centro do Rio e deixou poemas em suas paredes, já cobertas por criações dos freqüentadores, entre elas poesias de Vinicius de Moraes e os primeiros compassos de Aquarela do Brasil, por Ary Barroso.

A tradição registra que o antigo dono do bar, revoltado com os calotes constantes, decidiu pintar aqueles painéis, pois não admitia que além de não ser pago ainda fornecesse espaço para que seus devedores se imortalizassem.

Os versos de Neruda não permaneceram nas paredes, mas o leitor solitário está ali para reinventá-los em seu rito pessoal.

Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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