Pensata

Antonio Carlos de Faria

10/07/2003

Botequim filosófico

De onde viemos e para onde vamos. Essas questões que em maior ou menor grau afligem qualquer pessoa não fazem sentido para o Afrânio. Ele sempre soube que veio da Penha e que seu destino é com freqüência um certo botequim de Copacabana.

Só fica em dúvida quando o ônibus Penha/Copacabana chega muito lotado. Aí ele é capaz de pequenos detours que retardam seu objetivo, mas que certamente será alcançado. Aperto só sobre lençóis limpos e perfumados, costuma dizer.

Essa imunidade em relação às incertezas da vida fez do Afrânio um sujeito admirado pelos amigos, que gostam de ouvi-lo nas rodas de discussão do tal botequim. Sua fama aos poucos ultrapassa as fronteiras do pé sujo e começa a atrair alguns curiosos.

Anteontem, mal ele chegou, um desses novatos quis lhe testar e foi logo perguntando o que seria a verdade, espécie de pegadinha atemporal, usada como casca de banana no caminho dos sábios.

-A verdade é uma palavra extremamente feminina, disse calmamente o filósofo do botequim. Por ser mulher, gosta de parecer diferente a cada dia, detesta repetir a roupa. E o mais interessante é que faz questão de não ser sempre a mesma justamente para ser reconhecida.

Os veteranos trocaram olhares de satisfação, pois viam que o campeão estava em plena forma, pronto para qualquer embate. Não se dando por satisfeito, o visitante perguntou quantos tipos de mulher existiriam, usando uma forma indireta para continuar a falar sobre a verdade.

-Há só três tipos de mulheres. As feias, as bonitas e a Luma de Oliveira, sintetizou Afrânio, que, indiferente à expressão de parvo do questionador, continuou:

-A natureza foi de uma monotonia incrível ao perpetrar tantas montanhas, rios e mares. Mas quando chegou a vez de fazer a Luma, resolveu ser econômica. Ficou numa única versão, quase mítica. Na nossa comparação inicial, a Luma seria a verdade absoluta, uma ilusão humana, demasiada humana.

As últimas palavras fizeram o visitante pular do banquinho. Exaltado disse que Afrânio era um malandro parodiando Nietzsche.

-Malandro é o sujeito que vive honestamente do trabalho alheio. Quem faz isso desonestamente é apenas ladrão, asseverou o sábio, sem se abalar com o ataque do neófito.

A menção a Nietzsche assombrou os demais ouvintes. Alguns confundiram com chinite, o chope com muita pressão, em que a parte líquida é igual ou menor do que a espuma. Afrânio não perdeu tempo e aproveitou para dizer que contestava algumas das máximas do pensador alemão:

-Ele dizia que quando uma mulher demonstra inclinações eruditas é porque há algo de errado na sua sexualidade. Ora, isso é coisa de quem não gosta de mulheres. Eu digo que as tais inclinações quase sempre aguçam e refinam a sexualidade feminina.

A assertiva deu início a um longo debate sobre os predicados femininos preferidos por cada um dos participantes da roda. O noviço, ainda recalcitrante em admitir o brilho de Afrânio, quis saber sua opinião sobre outro aforismo do alemão, aquele que diz que a mulher aprende a odiar, na medida em que deixa de encantar.

-Essa é uma daquelas frases de efeito que seduzem por serem simples. Mas as mulheres são tudo, menos simples. Elas amam e odeiam com intensidade e ao mesmo tempo, e isso nada tem a ver com o encanto que produzam. Mais um furo do alemão, concluiu Afrânio.

A platéia foi aos céus com a evidente supremacia do guru da Penha. Os mais afoitos quiseram carregá-lo em triunfo por entre as mesas do estabelecimento, o que não foi possível em face dos sinais de desequilíbrio etílico que alguns já demonstravam.

O visitante já estava entregando os pontos, mas como último golpe contra o filósofo do botequim tentou questionar as origens do seu saber.

Afrânio disse laconicamente que ele vinha da Penha e que mais não era preciso declarar, pois falar muito de si mesmo pode ser também um meio de se esconder.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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