Pensata

Antonio Carlos de Faria

17/07/2003

O cinema do falso dilema

A cinematografia de cada país reflete também as obsessões firmadas por seus autores. Esse repertório de manias estabelece padrões que os fãs esperam encontrar em cada filme. Porém essa previsibilidade também pode se cristalizar em uma fórmula pobre e chata.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o vilão sempre vai dar uma chance para o super-herói, pois no lugar de matá-lo imediatamente vai submetê-lo a alguma forma de morte lenta. Se for uma trama policial, haverá uma dupla de agentes e um deles vai causar problemas. Numa luta, o mocinho vai ser massacrado antes de reagir e derrotar o adversário.

Penso nesses cacoetes cinematográficos depois de assistir "Conto de Inverno", um dos filmes que o diretor francês Eric Rohmer dedicou aos desencontros amorosos.

A fita mostra as desventuras de uma cabeleireira à espera do homem ideal e suas relações conflituosas com dois pretendentes. Em poucas cenas dá para confirmar que se trata de mais um drama filosofante francês, que teria melhor aproveitamento como comédia.

A ilusão do parceiro ideal, a tal cara metade almejada para dar conta do vazio que devora qualquer um, já rendeu inúmeras tragédias na dramaturgia, na literatura, mas depois do advento da psicanálise perdeu seu apelo de questão obscura. Mesmo assim, Rohmer a mantém como fonte legítima de sofrimento.

Em "Conto de Inverno", a cabeleireira --ou esteticista, como se declara-- é uma mocinha bonita, sem outros atributos físicos. E se veste com mau gosto, o que parece uma forma de o diretor acentuar que é uma mulher comum.

Fazendo uma comparação entre cinematografias de diferentes países, se o filme fosse italiano o mesmo tipo de argumento renderia duas horas de bom humor. Talvez, contrariando o mito, estejam na Itália e não na França os melhores amantes, aqueles que não mistificam a relação amorosa.

A heroína italiana seria uma atriz bem fornida, usando vestidos decotados. O artifício realçaria a respiração ansiosa de quem espera o príncipe perfeito.

No caso de uma produção americana, a mocinha falaria no mínimo uma dúzia de fucks durante a trama. O happy ending, que melosamente acontece no original francês, na versão para os Estados Unidos teria que ser obrigatório.

E o que aconteceria se o filme fosse brasileiro?

Nos últimos anos, o cinema nacional vem consolidando seu prestígio graças a uma sucessão de produções com elevado grau de qualidade. Mas isso de forma alguma exige um rompimento com o passado.

As obsessões do cinema nacional certamente fariam uma cena em que a cabeleireira aparecesse se despindo. Assim, como quem não quer nada, antes de tomar uma ducha ou de vestir um baby-doll para dormir.

Outra obsessão do repertório. Se o filme fosse brasileiro, não haveria o dilema da mocinha que sofre para continuar sua busca pelo homem ideal e deixar os dois pretendentes. Aqui, ela ficaria com os três.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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