Pensata

Antonio Carlos de Faria

24/07/2003

Inverno carioca

No Rio, o inverno é que é relâmpago. Um sequestro rápido, desses para saques eletrônicos, pode até durar algumas horas. O inverno, nem isso.

Há um júbilo na cidade quando a temperatura baixa aí pelos dezoito graus e a paisagem se dissolve em brumas de cinema inglês. A atmosfera fica tão mágica que é capaz de transportar as imensas barcas de passageiros da baía de Guanabara para uma dimensão atemporal.

Essa poderia ser a explicação romântica para o que aconteceu outro dia, quando um desses navios ficou sem rumo no nevoeiro e uma viagem de vinte minutos acabou se transformando em aventura de quatro horas.

O noticiário, prenhe de uma objetividade sem transcendência, viu no episódio apenas sérios problemas de falta de instrumentos e de fiscalização do poder público. Ora, isso é verídico, mas não custa ter um pouco de sensibilidade e deixar-se arrebatar pelo encanto do inverno.

O fato de ser uma estação tão fugaz na cidade também explica o ar desajeitado dos cariocas quando usam casacos e roupas mais pesadas. Nos dias frios, essas vestes são recuperadas dos cantos remotos dos armários, onde às vezes repousaram por anos. É compreensível que não se sintam à vontade ao serem expostas ao ar livre.

Estão visivelmente fora de seu habitat natural, à semelhança dos pingüins que todos os anos insistem em nadar da Patagônia até as praias do Rio. O curioso é que costumam chegar nos finais de semana, prontos para as fotos de primeiras páginas dos jornais. Até parece estratégia de marketing de cerveja.

Neste ano, um desses pingüins de longo curso aportou na praia do Flamengo e só foi notado quando caminhou até a ciclovia, atrapalhando o tráfego do pessoal do cooper e das pedaladas. Até ali, não havia despertado a curiosidade de ninguém. Afinal, numa cidade tão cenográfica, podia ser apenas mais uma filmagem.

Os pingüins não vieram sozinhos neste inverno. Dois mendigos argentinos também foram resgatados, dormindo nas areias de Copacabana.

Pelo menos assim foram descritos pelo centro de triagem. Tivessem vindo da Europa ou dos Estados Unidos, o imaginário poderia pintá-los como fósseis vivos da geração hippie. Como são hermanos, foram tachados de mendigos mesmo, cruamente, em mais um episódio que comprova o pouco apelo que tem por aqui a magia do inverno.

Quem resiste a esse racionalismo implacável vai aos recantos da cidade que preservam o clima de aconchego, próprio das temperaturas mais amenas. Um breve roteiro recomenda caminhadas pela estrada das Paineiras, passeios pelo Parque Nacional da Tijuca.

Os mais sonhadores devem tentar uma viagem na barca que vai até Paquetá, a ilha na qual Joaquim Manoel de Macedo ambientou o romance "A Moreninha". Com sorte, as brumas podem se formar e quem sabe, na hora do desembarque, seja a própria quem venha nos receber.






Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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