Pensata

Antonio Carlos de Faria

01/08/2003

O líder espiritual

Quando o Almeida apresentou a nova namorada para a turma da peteca, em Copacabana, todos foram unânimes em elogiar a beleza da garota, que mal fizera 20 anos. Grande Almeida.

Mas bastou ela sair --tinha que terminar um trabalho para a faculdade-- para alguns questionarem se o dom Juan não achava temerário namorar uma garota quase 40 anos mais nova. Afinal, não precisava ser psicanalista para ver que ela havia arranjado um substituto para a figura paterna.

-Ora, é preferível ser substituto na seleção brasileira, do que eterno titular no Bangu, disse o Almeida, feliz da vida.

A turma acatou o argumento, sentindo que haviam acabado de ouvir mais um dos preceitos do Almeida, uma espécie de líder espiritual do grupo. Além disso, a namorada era de uma simpatia sedutora e, de certa forma, inflava o ego de todos. Se um deles havia chegado ao paraíso, ficava implícito que os outros também tinham direito a sonhar.

Um mais gaiato chegou mesmo a questionar a garota sobre os motivos que a levaram a namorar um sujeito já desgastado como o Almeida. A pergunta causou alvoroço e foi o próprio namorado quem respondeu, sob os olhares de aprovação da amada:

-Ela me acha parecido com o Mick Jagger. Gosta do meu "shape". Eu sempre soube que algum dia iria me redimir do apelido de beiçola...

Assim, o namoro do Almeida foi assimilado e só voltou à baila no dia em que ele passou pelos amigos e disse que estava sentindo necessidade de buscar novos desafios. O amor revigora, explicou, enquanto deixava para trás a peteca e caminhava para uma rede de futevôlei.

A mudança, de apenas 20 metros na praia, foi sentida como uma troca de identidade pelos antigos companheiros, que não tardaram em culpar o namoro como causa do desatino. Desde o começo haviam percebido que aquela história não iria acabar bem, disseram, arranjando finalmente um motivo para exorcizar a inveja.

O tempo passou, até que numa tarde os jogadores deixaram a peteca cair, surpresos por verem o Almeida se aproximar, sem a namorada, e pedindo reingresso no grupo.

Houve resistência inicial, mas em cinco minutos chegaram a uma decisão. É claro que o aceitavam de volta, pois não iriam querer aumentar a dor de seu arrependimento. Ainda bem que ele havia fugido da encrenca.

-Mas eu não estou arrependido nem fugi de nada, disse o Almeida. A única mudança é que troquei de namorada. Agora estou com uma amiga dela, que é fascinada pela onda retrô. Vive me fazendo perguntas sobre os anos 60 e coisas assim. Está louca para eu mostrar como se joga peteca.

Os amigos ficaram indignados. Quer dizer que ele, o líder espiritual, havia voltado só para fazer uma demonstração de peteca? Por acaso tinham cara de museu etnográfico? E o que mais a garota queria saber, além do jogo?

-Ontem, ela me perguntou como foram os anos da revolução sexual. Eu disse que houve batalhas extenuantes, nas quais lutei com brio e das quais sai ferido... Aí ela falou que quer cuidar dos meus ferimentos. Não é uma gracinha?

Os amigos fizeram um silêncio respeitoso. Haviam acabado de assistir à ascensão do Almeida para um outro plano. Estavam embevecidos. Alguns não disfarçaram os olhos marejados. Grande Almeida.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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