Pensata

Antonio Carlos de Faria

01/09/2003

Tristão e Isolda

Na noite da última quarta-feira, uma garoa fina umedeceu o Rio de Janeiro. As nuvens velaram o céu e não foi possível ver o ápice da aproximação de Marte, que nunca esteve tão próximo em 60 mil anos. Chance igual a essa só em 2287, dizem os cientistas, o que me faz desconfiar que novamente vou perder o espetáculo.

Neste mês, ainda vai ser possível ver o planeta vermelho bem pertinho. Mas não adianta. Perder o ápice tem um peso simbólico. Dá aquela sensação de se ter estado ausente em um dos grandes momentos históricos. Aqueles que vão para os livros, mas dos quais raramente somos testemunhas.

Como a recente noite enluarada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, quando Gerald Thomas respondeu às vaias do público mostrando a bunda. Os jornais descrevem a cena como patética --de repente, no meio do palco, o diretor reagiu contra os críticos exibindo seu traseiro lunar.

A mim, que perdi esse instante memorável e a apresentação da versão geraldiana para Tristão e Isolda, seu ato parece ter sido um rompante heróico digno de entrar para os anais, sem trocadilho.

Agora, não tem cabimento a reação das autoridades que querem processá-lo por ter cometido um ato obsceno. Afinal vivemos em um país em que se mostram glúteos por qualquer motivo nas praias, na televisão, nos outdoors, nas revistas, em quase todos os lugares.

Definitivamente, não parece razoável que só não se possa fazer isso como forma de protesto em um teatro. O diretor vem argumentando lucidamente que um artista não pode ser coibido e tudo o que faz sobre um palco é, de todo modo, parte de sua obra. Gerald Thomaz merece é ser aplaudido por colorir com humor os dias cinzas que cobrem o país.

O episódio, por outro lado, repara uma injustiça do passado. Tristão e Isolda é uma ópera que Wagner chegou a pensar em estrear no Rio de Janeiro, a pedido do imperador dom Pedro 2º, em 1857. A estréia só ocorreu em 1865, em Munique. Se os cariocas não tiveram a honra da première, agora podem se gabar de terem sido os primeiros a ver publicamente o derrière dramático do polêmico diretor teatral.

Mas eu falava de momentos históricos, a propósito do tempo nublado que impediu a visualização de Marte. Na noite do ápice de sua aproximação, as gotinhas da garoa, iluminadas pelos refletores da avenida Atlântica, criavam um véu de luz sobre Copacabana, pontilhado por pequenos pontos brilhantes, como uma chuva de estrelas.

Por causa do mau tempo, o fenômeno só foi presenciado pelos poucos que insistiram em caminhar pelo calçadão à beira mar. Não se tratou de um dos grandes fatos que marcam a civilização, mas certamente teve a beleza dos momentos comuns que compõem a vida de qualquer pessoa. Não ganhou relevância para figurar nos memoriais, mas fica pelo menos registrado nesta crônica.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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