Pensata

Antonio Carlos de Faria

08/09/2003

Em busca da grapete perdida

"Confesso que sou um saudosista", disse o Torres, assim de supetão, num dos intervalos de silêncio naquela mesa do Villarino. "Garçom, prepara uma vaca-preta!"

Os companheiros da mesa olharam-no admirados, afinal ele não era um homem conhecido por sentimentalismos e nem o Villarino é um lugar onde tenham sorvete para bater com coca-cola, a fórmula ancestral da vaca-preta.

"Você já bebeu demais", rebateu o Chico. "Além disso, eu é que sou o saudosista aqui. Tenho saudades até do tempo em que não vivi", completou, olhando o Torres de soslaio e tomando mais um gole de cerveja.

"Dá um exemplo", desafiou o Torres.

"Pois estamos no lugar certo. Tenho saudades do tempo em que esse bar vivia cheio de gênios. Vinícius, Jobim, Ary Barroso, Neruda..."

"A genialidade é um processo. Uma obra é construída ao longo da vida", disse o Torres, bebericando mais um pouco de uísque. "Talvez você esteja acompanhado agora por pessoas que serão lembradas pela posteridade. Saudosismo mesmo é o que eu sinto. Diria até que é um sentimento proustiano, uma busca pelo tempo perdido."

"Exemplifica", desafiou o Chico.

"Tenho saudades das pornochanchadas. Aquele cinema de sexo ingênuo e bem humorado. As mulheres diziam 'ah, estou com um calor...' e iam logo tirando a roupa. Era o mundo pré-Aids. O mundo pré-internet, no qual havia quem acreditasse que aconteceria uma revolução no dia em que um operário chegasse ao poder..."

"É verdade. Nunca pensei nessa dimensão transcendental das pornochanchadas", concordou o Chico. "Naquela época, até os padrões estéticos eram diferentes. Lembra? As atrizes tinham bunda grande e seios pequenos..."

"Se lembro...", disse o Torres, contraindo os lábios e engolindo em seco. "Entre as mulheres era moda fazer cirurgia para diminuir os peitos. Jogavam fora o que hoje é ouro. Agora, o melhor mesmo daqueles filmes era a criatividade dos títulos."

"Meu preferido é Histórias que nossas babás não contavam", lembrou alguém na mesa, o que deu ensejo para que os outros desfiassem um rosário profano. O bem-dotado, Reformatório das depravadas, A viúva virgem, Memórias de um gigolô, Adultério à brasileira, A superfêmea...

"E os cartazes? Ah, os cartazes das pornochanchadas... Sempre havia uma gostosa em posição sensual, mas nunca explícita. As grandes estrelas das produções ficavam ali, seminuas, como iscas eróticas a nos atrair para o cinema", lembrou o Torres, com olhos perdidos em algum ponto além das paredes do velho bar.

"Pois eu tenho saudades da amizade colorida", aduziu o Chico, numa segunda tentativa de emplacar uma opção reminiscente. "Hoje, a moda é ficar, ir de um para outro, sem efetivamente conhecer ninguém. A amizade colorida ia mais longe, pois havia intimidade entre os parceiros, às vezes cumplicidade, mas sem possessividade."

"Ninguém era de ninguém", assentiu o Torres, que logo começou a se lembrar de casos duplos, triplos ou até múltiplos de que teve conhecimento nos tempos da faculdade, coisas de 20 anos atrás. "Era uma forma de contestação à moral burguesa", refletiu em voz alta, concluindo que naquela época o Chico era um conquistador terrível, um casanova do Rio de Janeiro.

"Não exagera", reagiu o homenageado. "Eu não era tanto assim. Você sim é que tinha fama de ser um arrasador de corações."

Ambos casados, pais de vários filhos, entraram em introspecção reverente. Olhavam para os próprios copos, recordando as respectivas façanhas, que em alguns casos até passavam por conquistas comuns. O devaneio não demorou muito, pois alguém na mesa chamou o garçom e pediu uma grapete.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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