Publifolha
04/12/2007 - 08h30

Médico conta a história da homeopatia no Brasil

da Folha Online

O médico homeopata e escritor Paulo Rosenbaum conta em artigo a história da homeopatia no Brasil, que começou com o médico francês Benoît Mure, há 167 anos.

Divulgação
Livro mostra princípios básicos e história da homeopatia
Livro mostra princípios básicos e história da homeopatia

Rosenbaum é autor do livro Homeopatia, da Publifolha, e de outros cinco títulos na área. Também é Docente Fundador e Chefe da Escola de Homeopatia e ministra aulas em várias instituições do Brasil e do exterior.

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Benoit Mure, personalidade médica do Império

Em 21 de novembro de 1840 desembarcava no Rio de Janeiro o médico francês Benoît Mure, que se tornaria o introdutor da homeopatia no Brasil, chegando a dispor de sua fortuna pessoal para difundir a medicina e direcioná-la para o tratamento de escravos e dos "excluídos pela sociedade".

Ainda que ignorada por muito homeopatia tem uma longa história política e institucional no país. Teve várias fases e parece estar agora recobrando seu fôlego. A homeopatia foi oficialmente introduzida no Brasil por um discípulo direto de Samuel Hahnemann, o francês Benoît Jules Mure (1809-1858). Ele chegou ao país depois de realizar uma peregrinação na Europa, aonde difundiu e divulgou os princípios da então nova arte médica. Palermo, Paris, Cairo e Malta estiveram em seu roteiro de propaganda homeopática. Quando desembarcou no Rio de Janeiro a bordo da barca francesa Eole em novembro de 1840, Mure estava com 31 anos de idade e repleto de projetos.

Sua história repete a de muitos outros: recuperava-se de uma tuberculose pulmonar. A moléstia o acometeu bem jovem e como tantos portadores de tísica esteve bem desenganado depois de uma temporada rodando pelos médicos e clínicas parisienses. Mure submeteu-se ao tratamento homeopático ministrado por Sebastião Des Guidi, também discípulo de Hahnemann e introdutor da homeopatia na França. Mure recuperou-se.

Proveniente da burguesia de Lyon formou-se na Faculdade de Medicina de Montpellier. Dentre todas faculdades européias foi esta que sempre teve a tradição de ser um importante reduto da medicina vitalista. Onde o debate poderia estar centrado nas várias concepções de saúde e doença, adaptação e resistência, terreno e suscetibilidade. Discussões que deram origem às concepções posteriores de imunidade como fatores decisivos em prognósticos e terapêuticas. O pensar vitalista médico do XIX tinha como base o pressuposto de que os organismos são direcionados por uma espécie de "força de saúde" que se impõe normalmente como força dominante. Abalos deste "princípio vital" seriam os responsáveis pela aparição de moléstias.

Um plano ao imperador

Conforme os registros coletados pelo historiador da medicina e médico Emidgyo Galhardo, sabe-se que em 18 de dezembro de 1841 foram apresentados ao imperador os colonos societários franceses, juntamente com Mure. Esta colônia foi o propósito inicial da vinda de Mure, que era o representante oficial da Union Industrielle de Paris.

Mure foi apresentado ao imperador para expor seu plano de ação:

"Venho, em nome de todas as classes sofredoras que aspiram em França a mudar de posição, pedir a vossa majestade os meios de gozar, debaixo de um governo tutelar, do fruto legítimo de seu trabalho." No dia 30 do mesmo mês Mure segue a bordo da "Caroline" para o Sahy, com as cem famílias francesas que "trazem ao Brasil o fabrico em grande de máquinas de vapor. Elas se associam entre si e garantem-se mutuamente contra o incêndio, riscos do mar, falta de trabalho e despesas de educação dos filhos".

A ideologia médica nos parece hoje uma matéria anacrônica e fora de contexto entretanto era o tom prevalente nos embates científicos do século XIX. O introdutor da homeopatia no Brasil, influenciado pelas idéias socialistas de Saint Fourier e Jacotot, funda em 1842 uma colônia societária falansteriana, em Santa Catarina na península formada pelo Rio São Francisco, denominada de Colônia Societária do Sahy junto com a Escola Suplementar de Medicina e Instituto Homeopático do Sahy. Ali se instalam fundando um dispensário de medicamentos, um centro de ensino com ambulatório e uma comissão de correspondência e redação.

Compreende-se, a partir desta atitude militante de Mure, sua luta ulterior, quando incorporou a seu projeto de expansão de atendimento médico advogando tratamento para escravos e para os socialmente excluídos do Brasil imperial. Os vínculos entre o movimento abolicionista e o apoio que obteve de setores ligados aos médicos homeopatas ainda é um capítulo histórico a ser esmiuçado.

Primeiros ambulatórios populares do Império

Mure vitaliza o pensamento médico do Império. Faz preleções pelo futuro da arte médica, é prosélito de uma medicina social mais ativa, passa a defender significados e propósitos de sua particular concepção dos objetivos da saúde pública. Contra uma prática médico-social que excluía, inclui em seu projeto o acolhimento das classes sociais sem acesso à medicina da Corte. Houve uma particular e curiosa mistura nas propostas de Mure: socialismo e ideologia religiosa. Como ideólogo sabia da necessidade de apoio político e do aval acadêmico para conseguir fazer avançar a institucionalização da prática da homeopatia. Articula-se nos contatos políticos para tentar alcançar um estatuto mais respeitável para a medicina no qual acreditava. Mure vislumbra que a difusão da homeopatia pode ser uma perspectiva de alcançar parte dos objetivos malogrados no Sul.

Consultórios populares eram abertos no Rio de Janeiro e em Salvador. Estes ambulatórios gratuitos foram criados pelos homeopatas em 1843 - sendo os primeiros ambulatórios populares do país -- e vendo seu sucesso junto à população e o aumento da adesão popular ao tratamento a Academia Imperial de Medicina, também resolve abri-los em 1848.

Mure despede-se do Brasil, de onde parte em abril de 1848. Mure saiu do Brasil extenuado pelo trabalho incessante e desgastado pelos oito anos de embates falecendo no Cairo dez anos mais tarde em 1858. Observa-se o surgimento de novas organizações homeopáticas no país e cresce o número de publicações.

Mas é através de sua obra empírica/experimental que seu projeto adquiriu dimensão mundial. Mure, em seu "Patogenesia Brasileira e Doutrina da Escola Médica do Rio de Janeiro", dirige e compila uma série de 39 patogenesias (experimentos metódicos de substâncias medicamentosas) com substâncias obtidas, selecionadas e preparadas segundo a farmacotécnica homeopática, em um período histórico cujas dificuldades científicas eram literalmente descomunais. Edições de seu livro aparecem em 1853 (Estados Unidos) e 1859 (Espanha).

Uma opção natural para a medicina

O mundo científico já havia reconhecido de forma especialmente generosa os trabalhos dos viajantes e naturalistas que catalogaram (científica e iconograficamente) a exuberante flora e fauna deste país. É o caso dos médicos holandeses Piso e Marcgrave (naturalistas e médicos integrantes da comitiva de Maurício de Nassau), de Saint-Hilaire, dos botânicos Spix e Martius e de pesquisadores menos famosos do século XIX como Freire Alemão, Velloso, Almeida Pinto, Caminhoá e Peckolt.

Nesta pós-modernidade tardia seria importante uma revisão histórica do período da medicina no Império. Faltou reconhecer o trabalho de Mure, especialmente pelo estudo da fauna e da flora do País. O autor foi bem além de uma catalogação farmacodinâmica/farmacognósica. Não se detém em fazer uma mera recompilação dos efeitos medicinais ou de indicações terapêuticas das substâncias obtidas das fontes da medicina indígena e popular, muito comuns nos tratados dos botanistas. Apresenta listagens de sintomas obtidos através da experiência metódica. Faz isto usando as recomendações hahnemanianas quando adota os critérios de uma Higantropharmacologia (estudo dos efeitos das substâncias medicinais sobre o homem) quando são registradas as observações dos efeitos - objetivos e subjetivos -- sobre a totalidade. O trabalho experimental organizado por Mure não é somente ainda apropriado para subsídios de pesquisa histórica, e instrumental terapêutico. Representou um incomum marco na preservação da biodiversidade. Isto em uma época na qual tais preocupações eram virtualmente inexistentes. Seu trabalho ainda é original e contemporâneo se considerarmos que desde os anos 1980 há um boom de pesquisas buscando novas substâncias medicinais nas florestas tropicais. Pode-se observar na obra de Mure o esforço do trabalho experimental que organiza a matéria médica brasileira com elementos obtidos de todos os reinos da natureza, muitos deles ignorados (ou apenas catalogados) por outros ilustres viajantes.