Publifolha
04/03/2007 - 09h16

Otavio Frias Filho: "Um pai puritano e iluminista"

da Folha Online

Depoimentos e palestras de 26 jornalistas e intelectuais brasileiros estão reunidos em "Um País Aberto: Reflexões sobre a Folha de S.Paulo e o jornalismo contemporâneo", livro da Publifolha sobre a história do jornal e temas atuais do jornalismo --econômico, on-line, cultural-- e a relação entre imprensa e pesquisas de opinião.

Leia abaixo o texto de Otavio Frias Filho, jornalista que exerce as funções de diretor de Redação da Folha desde 1984. É também autor de "Tutankaton" (Iluminuras, 1991) e "De Ponta Cabeça" (Editora 34, 2000), entre outros títulos. O relato fez parte do ciclo de seminários de 2002 da Cátedra de Jornalismo Octavio Frias de Oliveira, mantida pela UniFiam-Faam.

Também estão disponíveis para leitura os artigos "Um País Aberto", de Octavio Frias de Oliveira; "Independência: formidável artigo jornalístico", de Clóvis Rossi, e "Empresário primoroso, jornalista completo", de Boris Casoy.

UM PAI PURITANO E ILUMINISTA

25 de fevereiro de 2002

Falar sobre o próprio pai é uma tarefa difícil. Quase todo filho idealiza seu pai. Um filho que faz ressalvas em relação ao pai bem merece o epíteto de ingrato. E um filho que, ao contrário, enaltece seu pai não faz mais que a obrigação. Falta-lhe, além disso, isenção para elogiar alguém tão querido e tão próximo. Repetirá os lugares-comuns que todo filho diz sobre todo pai. Se o pai em questão é alguém que adquiriu notoriedade em sua área de atuação, como é o caso, então a tarefa se mostra quase impossível.

Flávio Florido/Folha Imagem
Octavio Frias ao lado da mulher, Dagmar, e do filho Otavio, em evento do Senac de São Paulo
Octavio Frias ao lado da mulher, Dagmar, e do filho Otavio, em evento do Senac de São Paulo

Não é por acaso que Cordélia, a filha exemplar de Shakespeare, quando perguntada a respeito do que tinha a dizer sobre seu pai, respondeu: "Nada". E, instada uma segunda vez a se pronunciar, repetiu ainda: "Nada". Shakespeare, que não desperdiçava falas, quis deixar bem clara a natureza moral do silêncio de Cordélia.

Felizmente não sou Cordélia, e meu pai é quase o exato oposto do pai que dá seu nome àquela tragédia. Não é rabugento, como aquele, nem nunca foi despótico. Nada tem da melancólica mistura de vaidade e ingenuidade do pai de Cordélia. Não ambiciona o ócio, como ele, de uma aposentadoria tranqüila e caprichosa.

Ao contrário. Penso que a admiração que hoje em dia cerca meu pai, atravessando de uma ponta a outra o espectro das opiniões, tem muito a ver com sua vitalidade, com sua disposição para continuar a trabalhar, a se interessar pelas coisas, a aprender. Meu pai está hoje com 89 anos e segue seu ritmo de trabalho habitual. Participa de reuniões, acompanha planos de investimento, controla orçamentos, dá idéias de pauta, lê e copidesca editoriais. Até há poucos anos, ele seguia montando a cavalo, hábito ao qual somente renunciou depois de um apelo coletivo da família.

Como não é tarefa fácil falar sobre ele, vou me esquivar de discorrer sobre sua atuação como empresário, como personalidade da imprensa, como figura pública. Da sua conduta pessoal, vou me ater a destacar dois aspectos apenas. Esses aspectos, além de me fascinarem, sempre me deixaram quase intrigado. É em tom de confidência, portanto, estranha confidência em público, que os abordo aqui.

O primeiro deles é que meu pai é um puritano. Essa definição soaria para um homem como ele quase como um insulto. Meu pai despreza os puritanos por achá-los hipócritas. E seria difícil alguém menos hipócrita que meu pai. Estou vendo daqui a cara de aborrecimento dele, entediado com nossa homenagem e agora contrariado por ser chamado de puritano. E pelo próprio filho!

Meu pai fala palavrões, se considera agnóstico, não é indiferente aos prazeres da mesa e eventualmente se demora a observar uma mulher que passa pelo recinto. O tema ainda é objeto de admoestações da minha mãe. Não posso dizer que eles não briguem muito. Sempre brigaram, aliás. Mas outra coisa que me intriga é como é possível que duas pessoas tenham superado as vicissitudes do casamento a ponto de atingirem um estágio de comunhão --e de amor, não há outra palavra-- que a maioria de nós dificilmente chegará a conhecer.

E no entanto ele é um puritano. É puritano nos hábitos austeros, quase espartanos. É puritano no seu apego à verdade, um apego que só não é obsessivo porque é, nele, algo espontâneo e natural. É puritano em seu horror de causar dano a quem quer que seja e no costume, rigorosamente observado, de jamais falar mal de alguém, mesmo de um ou outro desafeto.

O outro aspecto que pretendo mencionar é que a sua inteligência viva e concreta --atributo que lhe é reconhecido por consenso geral-- não se contém nas convenções, não cabe nas hierarquias. Meu pai sempre foi irônico, por exemplo, em relação a padres e militares (peço perdão pela gafe se houver algum na sala). Ele não acredita em nada exceto no mérito pessoal. Estruturas burocráticas para ele tendem a ser incompetentes, ordens hierárquicas servem para fomentar a mais tola vaidade, verdades estabelecidas muitas vezes são fantasias, toda retórica para ele é ilusão. Exibicionismo, sobretudo no estilo narcisista tão em voga nos nossos dias, é algo que ele desconhece. Nem mesmo a preocupação com a própria imagem, que em proporções razoáveis é normal em todo ser humano, tem lugar importante na vida do meu pai.

Ele sempre gostou de fazer coisas, coisas práticas e úteis. Conheceu altos e baixos na vida, ficou mais sábio por causa disso. Respeita o saber, a cultura, os livros --em viagens, sempre levava a família para visitar museus--, embora nunca tenha escondido que essa não é a área de sua inclinação. Cansei de ver requintados argumentos intelectuais serem fulminados pela agudeza de sua inteligência. E sua ideologia, se posso chamá-la assim, sempre foi: encontre sua vocação e faça o melhor que puder. Seja livre para ser feliz. É o conselho que ele sempre teria dado aos filhos, se fosse de dar conselhos. Não é. Cedo aprendi a conviver com a dúvida e o debate, porque tenho um pai que é iluminista sem se dar conta de que é.

É duro ser filho de um pai assim. Meus irmãos e eu ainda estamos tentando. Felizmente ele continua conosco, cheio de amor pela vida e de entusiasmo por qualquer novidade. Quase todos os pais são, por definição, o melhor pai do mundo. Agradeço a vocês pela oportunidade de dizer duas das muitas razões pelas quais o meu é.

"Um País Aberto"
Autor: Vários
Editora: Publifolha
Páginas: 204
Quanto: R$ 29
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha.