Publifolha
19/12/2006 - 09h33

Drauzio Varella guia leitor pelo universo dos macacos; leia capítulo

da Folha Online

Autor de "Estação Carandiru", o médico Drauzio Varella faz uma viagem pelo universo dos grandes primatas não-humanos em "Macacos", volume da coleção "Folha Explica" da "Publifolha". O primeiro capítulo do livro pode ser lido abaixo.

Divulgação
"Macacos", de Drauzio Varella
"Macacos", de Drauzio Varella

Ao percorrer os caminhos de orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobos, Drauzio Varella analisa os hábitos e relacionamentos sociais característicos destas espécies. Com discreta ironia, o autor expõe o que são as raízes biológicas do comportamento.

Como o nome indica, a série "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos tratados e fazê-lo em um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país.

Além de médico oncologista, Drauzio Varella é colunista quinzenal da Folha e especialista em primatologia.

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Confira a introdução de "Folha Explica - Macacos":

A vida na Terra é um rio que começou a correr há 3,5 bilhões de anos e chegou até você e mim, no meio de uma diversidade espetacular: leões, mosquitos, coqueiros, bactérias, algas marinhas e dezenas de milhões de outras espécies.

Veja o caso dos dinossauros. Dominaram o planeta por mais de 200 milhões de anos e sumiram num piscar de olhos, varridos por um meteoro que abriu uma cratera de dez quilômetros, no México. A poeira levantada e os vulcões que entraram em atividade como conseqüência do impacto poluíram tanto a atmosfera que a Terra ficou no escuro e os dinossauros foram extintos, para azar deles. E sorte nossa: um desvio de milésimo de grau na órbita do meteoro e eles estariam aí até hoje, enormes, predadores, sem deixar qualquer espaço para que surgisse algo parecido com o homem na face da Terra. Enquanto os dinossauros existiam, os mamíferos não passavam de uns poucos roedores noturnos apavorados nas tocas.

Indiferente à tragédia dos desaparecidos, o rio da vida seguiu seu destino impiedoso de formar novas espécies e abandoná-las à própria sorte. Estima-se que as 30 milhões de espécies que existem hoje correspondam a apenas 1% das 3 bilhões que já existiram. O resto foi extinto.

Há uma fração de minuto evolucionário, na África, surgiu um primata diferente dos macacos comuns: era grande e não tinha rabo. Esse ancestral teve cinco descendentes: orangotango, gorila, homem, chimpanzé e bonobo.

O orangotango é o mais velho, apareceu há 12 milhões de anos. Depois nasceu o gorila (8 milhões), seguido pelo homem (5 milhões). Os irmãos mais novos, chimpanzés e bonobos, são gêmeos não-iguais, nascidos há 3 milhões de anos.

Veja agora os besouros. Há mais de 300 mil espécies desses insetos (alguns acham que há mais de 1 milhão), mas, apesar das diferenças de cor, tamanho e formato do corpo, para nós são todos iguais: besouros. Em termos genéticos, no entanto, a diferença de uma espécie de besouro para outra pode ser muito maior do que a que nos separa dos quatro grandes primatas. Com os chimpanzés e bonobos, por exemplo, compartilhamos mais de 98% dos genes. A explicação para serem eles quem são e nós o que somos fica por conta de menos de 2% dos 100 mil genes que constituem nosso patrimônio genético.

É bem provável que um besouro, ao olhar para nós e os chimpanzés, conclua que a única diferença está nas roupas que vestimos. A semelhança é de tal ordem que, se empregássemos para os primatas o critério científico usado para classificar os pássaros, por exemplo, o homem (Homo sapiens) faria parte do gênero Pan, o mesmo dos chimpanzés (Pan troglodytes) e dos bonobos (Pan paniscus).

É lógico que níveis de identidade genética como os que caracterizam os grandes primatas não se restrinjam à simples aparência física. Boa parte dos 80 mil a 100 mil genes presentes no organismo desses animais coordena funções cerebrais mais elevadas, como a capacidade de utilizar instrumentos, comunicar-se através da linguagem, resolver problemas de causa e efeito e transmitir ensinamentos de uma geração para outra, criando condições para o aparecimento da cultura.

Por essa razão, nos últimos trinta anos, um dos campos da etologia (ramo da ciência que estuda o comportamento animal) que mais se desenvolveu foi o dos grandes primatas. Os trabalhos publicados mostram mais semelhanças comportamentais do que diferenças entre o homem e seus parentes mais próximos. O uso da política como estratégia para manter o poder, os ataques mortais que uma comunidade lança contra outra na disputa de território, o canibalismo e os infanticídios encontrados entre os chimpanzés não diferem significativamente das práticas humanas. Da mesma forma, a energia com a qual um gorila macho defende seu harém e uma fêmea de orangotango luta para não ser estuprada não é tão diferente da descrita em muitas sociedades.

À luz da evolução, se orangotangos, gorilas, homens, chimpanzés e bonobos descendem de um ancestral tão próximo (o que justifica a identidade genética), a análise criteriosa do comportamento dessas espécies pode desvendar muitos segredos de nossos ancestrais.

Por exemplo, à medida que se aproximam da ovulação, as fêmeas dos chimpanzés e dos bonobos experimentam edema e congestão dos grandes lábios e do clitóris. Nessa fase, os genitais chegam a inchar tanto que as fêmeas só conseguem sentar de lado. Quando notam a presença do inchaço genital, os machos abandonam a tradicional indiferença e passam a disputar a companhia feminina, às vezes ferozmente, como veremos nos chimpanzés.

No cenário evolutivo, é simples entender como essa característica feminina se perpetuou na espécie. No passado, as fêmeas que desenvolveram a capacidade de apresentar genitais volumosos no período fértil tornaram-se mais atraentes e deixaram maior número de filhas e netas, que herdaram o traço genético.

Será que as fêmeas do ancestral comum que há 5 milhões de anos deu origem aos homens, e há 3 milhões aos chimpanzés e bonobos, apresentavam genitais inchados na época da ovulação?

Na espécie humana, a ovulação não é acompanhada de aumento de volume dos genitais externos. Se as fêmeas ancestrais das mulheres, chimpanzés e bonobas apresentassem essa característica sexual, ela teria obrigatoriamente chegado até nós, favorecida pela preferência masculina. Certamente, há 5 milhões de anos nossas avós-ancestrais não inchavam para indicar receptividade sexual; se o fizessem, teriam levado vantagem reprodutiva e as mulheres de hoje precisariam de cadeiras especiais para sentar.

Neste livro, vamos discutir as principais características do comportamento social dos quatro grandes primatas. Começaremos pelos orangotangos, primatas asiáticos adaptados à vida arbórea, os únicos solitários, errantes, em permanente busca de árvores frutíferas distantes umas das outras. Veremos que os orangotangos machos lutam ferozmente pela posse das fêmeas receptivas e que estas se interessam preferencialmente pelo macho vencedor. Dessa maneira, na evolução da espécie, os machos fisicamente fortes e as fêmeas que gostam deles predominaram, porque tiveram filhotes com características semelhantes às dos pais, capazes de lhes assegurar maior chance de sobrevivência em cima das árvores.

Embora também subam em árvores com habilidade, os gorilas foram os primeiros primatas terrestres. No chão, o risco de ataques predatórios criou a necessidade de formação do grupo. Os gorilas andam em tropas formadas geralmente por um macho dominante, quatro ou cinco fêmeas adultas e seus filhotes. A convivência dentro do grupo é pacífica, como mostram os filmes: o dominante é paciente com os filhotes, as fêmeas coçam as costas dele carinhosamente, e ninguém briga por comida. A tranqüilidade é quebrada, no entanto, quando um gorila estranho se aproxima do grupo. Como característica da espécie, os machos disputam as fêmeas com extrema ferocidade, e o infanticídio é prática freqüente nessas batalhas. Quanto mais brutal for o macho, maior número de fêmeas em busca de proteção será agregado ao harém.

Ao contrário das pequenas tropas dos gorilas, os chimpanzés formam comunidades de dezenas de indivíduos. Em grupos tão grandes, a força física deixa de ser a qualidade fundamental dos dominantes; por mais forte que um indivíduo seja, jamais poderá enfrentar sozinho uma coalizão formada contra ele. Diferentemente dos orangotangos e gorilas, o chimpanzé dominante não é necessariamente o mais forte, é aquele capaz de estabelecer alianças mais poderosas. A luta pelo poder, nesse caso, faz emergir a política como instrumento de dominância. Por exemplo, quando morre o dominante, e sua sucessão é disputada por dois ou três machos com hierarquia mal definida entre eles, é comum vê-los subir nas árvores e atirar as frutas mais apreciadas para o resto do bando, no chão. Uma vez eleitos para o posto de comando, jamais repetirão o gesto demagógico.

Enquanto nos chimpanzés o macho é infanticida e domina com brutalidade as fêmeas, seus irmãos bonobos formam comunidades matriarcais. Nelas, as coalizões femininas comandam os machos desunidos. Como conseqüência, não há descrição de infanticídio na espécie, e as fêmeas podem prescindir de proteção masculina. O jogo do poder fica mais sutil; menos dependente da força bruta. Como parte dele, os bonobos desenvolveram estratégias sexuais de alta complexidade, muito mais próximas das humanas, como será explicado.

Por opção didática, deixamos de lado os estudos sobre a evolução do sistema nervoso central e da inteligência nos grandes primatas, uma das áreas de maior interesse na ciência atual. Neste livro, vamos discutir o comportamento social de orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobos; e, por analogia, chamar a atenção do leitor para a importância dos mecanismos de competição e seleção natural na gênese do comportamento humano.

"Folha Explica - Macacos"
Autor: Drauzio Varella
Editora: Publifolha
Páginas: 100
Quanto: R$ 18,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha