Publifolha
13/06/2004 - 08h19

Ensaio capta a utopia e a dor do Brasil que não somos

HELOISA MARIA MURGEL STARLING
especial para a Folha

Em poema muito conhecido, "Hino Nacional", publicado ainda em 1934, Carlos Drummond de Andrade já se encarregava de evocar uma via própria à imaginação social e política brasileira, que insiste em apontar a persistência de uma zona de hesitação, inconsistência e indefinição, de um enredo problemático onde fica presa a construção da figura nacional, perenemente extraviada entre o exótico e o singular, entre autonomia e dependência, entre imagem e simulacro, entre modernidade e arcaísmo: "Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?".

Divulgação
Livro interpreta biografia, canções e carreira de Chico Buarque
Livro interpreta Chico Buarque e revela a extensão de sua obra

Cerca de meio século passado, o que torna o livro de Fernando de Barros e Silva, editor de Brasil, "Chico Buarque", um dos melhores trabalhos já escritos sobre a obra do artista é precisamente o esforço de trazer à tona, como fio unificador de uma obra imensa e variada, o projeto de construção de uma narrativa musical e literária sobre os descompassos dessa nacionalidade permanentemente deslocada, sempre em trânsito, sempre distante daquilo que é comum. Descompassos que na obra de Chico vão contaminando os princípios formadores da sociedade brasileira até hoje.

Organizado sob a forma do ensaio, "Chico Buarque" é construído em torno de uma idéia: tentar desvendar em palavras e imagens a metáfora de Brasil implícita na produção do artista. Essa capacidade de dizer o país dentro de uma perspectiva não convencional, argumenta Barros e Silva, está constituída sempre a partir das margens, num deslocamento de significado, por exemplo, entre o que virá e não vem, entre o que é tão recente que permanece à espera de conclusão, tão deteriorado que também não conseguiu envelhecer. Ou ainda, entre o que poderia ter sido e que, por falta de história, coube à imaginação do artista inventar.

Por vezes mergulhada num desalento trágico, por vezes imersa numa esperança de felicidade que aqui permanece como incógnita, a aventura nacional brasileira se deposita e se revela nas canções e na literatura de Chico, ambas dotadas de um rigor formal incomum, com todo seu potencial de utopia e toda a dor do Brasil que não somos, chão de desterro, pátria em abandono.

Talvez não por acaso o caminho adotado pelo livro seja o ensaio. A rigor, ensaios são uma forma de exposição que desconfia do sentido definitivo ou único dos acontecimentos e das idéias, apresentado pela teoria ou pela história, perseguem as condições de acesso ao que neles foi preterido, eclipsado ou anulado como inútil, e reconhecem o heterogêneo, o dissonante, ou fragmentário como um método para interrogar o presente.

Visto pelo ângulo do ensaio, interpretar, ainda que parcialmente, a produção artística de Chico, como procura fazer Barros e Silva, significa, por exemplo, ingressar em canções carregadas de interpelações sobre o passado recente do país, canções que funcionam como uma fantástica abreviação narrativa fisgada pela melodia e que, quando ouvidas, acarretam uma espécie de auxílio, não pragmático, não utilitário, para elaboração de uma certa imagem comum do país que possa ser válida para seus habitantes.

De certo modo, então, na leitura de Barros e Silva, o alvo dessas canções é a história, e o projeto da obra do artista inclui repensar de maneira radical, isto é, pela raiz, como é próprio à genealogia dos Buarque, Sérgio e Francisco, as questões sem resposta apresentadas pela história contemporânea brasileira. Nessa leitura, a produção artística de Chico carrega dobrada dentro de si o horizonte da utopia que se desenhou no país principalmente durante a década de 50 e o início dos anos 60: a expectativa de afirmação de uma nacionalidade comprometida com um amplo programa democrático e modernizador, disposto a produzir mecanismos de integração dos brasileiros ao tempo da modernidade, a estimular o desejo de integração do interior ao centro, do Brasil ao mundo, da tradição à modernidade.

Contudo essa obra carrega também, e simultaneamente, o espanto e a impotência de seu autor diante do desmanche desse Brasil meio singelo, abortado pelo golpe militar de 1964. No seu lugar, frustra-se o compositor, plantou-se uma figura nacional ufanista, militarizada e intimidante, fez-se um país de silêncio imposto, solidão e medo.

Mas o ensaio de Barros e Silva vai além: a obra de Chico também carrega consigo o avesso da utopia nacional-populista e de seu esforço ingênuo em modernizar o país procedendo à síntese apressada e artificial entre povo e nação. O Brasil que ressurge democratizado, a partir dos anos 80, é um país paradoxal mergulhado no reconhecimento da legitimidade dos valores, das instituições, dos princípios e das escolhas que conformam o repertório democrático e republicano da modernidade e, ao mesmo tempo, incapaz de ampliar o acesso aos frutos sociais gerados pela introdução da democracia política.

Por conta desse paradoxo, hoje, tudo está por um triz: a malandragem assume na corrupção sua forma moderna, anônima e institucional, o sonho de uma civilização brasileira parece perder-se em um cenário de indivíduos privados, cínicos, desinteressados do mundo público e desprovidos de responsabilidade perante seus semelhantes.

Algo se perdeu e no entanto permanece ainda que sem pouso certo, mais uma vez em trânsito. A percepção dessa dialética de limiar fundando a obra de Chico num lugar, invariavelmente instável e incerto, onde uma passagem se constrói e onde o Brasil sempre está por fazer-se, traduz a surpreendente inventividade do ensaio de Fernando Barros e Silva.

Traduz, igualmente, a astúcia da engenharia do autor: no seu livro, como, de resto, em toda a produção artística de Chico Buarque, canções e romances também tratam de citar uns aos outros e, na oportunidade da citação, apresentam o virtual que flui sob a superfície de compreensão do texto factual, do traço historicista da obra, deixando ainda mais evidentes os diversos nós temáticos por onde Chico parece fazer o esforço de "escrever a história duas vezes, nos revelando o que somos e aquilo que não nos tornamos".

São apenas histórias contadas por um narrador de periferia, de "fim de feira" feito Chico, que deixam suspensas no tempo os sons do que foi abandonado, eclipsado, anulado na aventura nacional brasileira. Uma espécie de sons onde estão inscritos os traços de uma vida compartilhada por todos e onde os caminhos de vivência comum se cortam, se encontram e se extraviam fortuita e incessantemente. Nesses sons, a memória do Brasil se agasalha e deles nasce o país sobre o qual se conta uma história, sobre o qual Chico pode compor uma canção ou fazer dele uma canção.

"Sambando na lama e causando frisson."

Avaliação:

Heloisa Maria Murgel Starling é professora de história das idéias na Universidade Federal de Minas Gerais e uma das organizadoras do livro "Decantando a República: Inventário Histórico e Político da Canção Popular Modena Brasileira" (ed. Nova Fronteira, Fundação Perseu Abramo, Faperj - 2004)

"Folha Explica Chico Buarque"
Autor: Fernando de Barros e Silva
Editora: Publifolha
Páginas: 184
Quanto: R$ 22,00
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha