Reuters
29/11/2002 - 20h43

Crise argentina arruína classe média

da Reuters, em Buenos Aires

Quando Juan Manuel recebeu com louvor seu diploma de direito na Argentina, nunca imaginou que 20 anos depois teria que caminhar todos os dias nas ruas do centro financeiro de Buenos Aires para vender dólares de forma ilegal e assim poder alimentar sua família.

A depressão econômica em que a Argentina mergulhou no último ano afastou os poucos clientes que tinha, obrigou a fechar um comércio familiar e o empurrou para a rua para procurar, quase com 50 anos, algum dinheiro para sobreviver.

"É preciso gerar recursos. Não se pode viver de ar. Tenho que procurar algo digno. O que faço não é legal, mas é digno", disse Juan Manuel sobre o trabalho, que lhe garante 30 pesos por dia (US$8,5) para manter seus dois filhos adolescentes.

Os argentinos nunca pensaram que seu país, que consideravam uma ilha européia na América Latina, poderia cair no abismo da miséria.

Mas o país caiu e arrastou para a decadência um dos seus principais representantes: a tradicional classe média.

O desemprego atinge 21,5% da população economicamente ativa. Outros dados mostram que 40% das pessoas enfrentam problemas de trabalho.

Estes recordes de desemprego não diferenciam classe nem nível educacional, já que 30% do exército de desocupados tem estudos universitários completos ou parciais. Na Argentina, a universidade pública é gratuita e a entrada não é limitada a elites culturais.

A Argentina teve historicamente um dos maiores níveis educativos da região, com padrão de vida elevado.

Cinco argentinos receberam o Prêmio Nobel, mais que qualquer outro país latino-americano, e profissionais do país se destacam em diversos projetos internacionais.

Mas a realidade indica que as novas gerações terão no futuro problemas de concentração e aprendizagem devido à má alimentação atual, segundo diversos estudos.

A pior crise econômica da história do país, que começou com um processo recessivo há quatro anos e aprofundou-se com a suspensão do pagamento de parte da dívida pública de US$114,5 bilhões, e com uma brusca desvalorização do peso, atingiu duramente a classe média.

Atualmente, 19 milhões de argentinos -53% da população -se encontram abaixo da linha de pobreza, segundo dados oficiais. Destes, 60% eram da classe média.

"São pobres que mantêm certas características, sobretudo culturais e educativas, que não são próprias dos pobres", disse a socióloga María del Carmen Feijoo.

"É gente que vive objetivamente em situação de pobreza, mas que tem sistemas de vida, expectativas e visões que não são próprias do universo da pobreza", disse.

Realidade
Com a decepção por ter perdido um nível de vida melhor, a classe média argentina teve que apertar o cinto.

O número de clientes da televisão a cabo caiu a 15% desde janeiro, a telefonia celular e os serviços de bipe perderam 20% dos consumidores, o transporte urbano caiu 13% e os vôos comerciais encolheram 70%.

Além disso, milhares de famílias que se sentiam seguras com uma pequena economia em suas contas bancárias tiveram que aceitar o congelamento e a devolução em bônus com vencimento daqui 10 anos, complicando ainda mais a situação de quem perdeu o emprego nos últimos meses.

Os setores médios também sacrificaram os seguros de saúde privados, os bens importados -que encareceram por causa da desvalorização da moeda- e, nos primeiros meses deste ano quase eliminaram o consumo de produtos que não são de primeira necessidade.

Agora, na hora de comprar, os artigos de preço baixo ganham de longe do prestígio das grandes marcas.

"A linha de uma cesta familiar aceitável, que é de 1.600 pesos (US$440) por mês, deixa 80% dos lares abaixo disto", disse Guillermo D'Andrea, diretor da cadeira de marketing da Universidade Austral.

"O que fazemos? Trocamos um desinfetante por água. Não fica tão limpo, mas continuamos limpando. Desodorante? Aproveitando o inverno usamos talco", disse D'Andrea.

"Sem dúvida, vamos no caminho de uma sociedade emergente para o de uma empobrecida", afirmou.

Futuro
Especialistas concordam que a crise modificou o mapa genético da sociedade argentina. "Pobreza já havia, mas isso [a crise] aumentou, consolidou e cristalizou a pobreza", disse Daniel García Delgado, pesquisador da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.

Para muitos, ficou nas lembranças a possibilidade de ter uma casa própria, de projetar uma carreira universitária, ou de simplesmente pensar no amanhã. O importante é ver como se vive hoje.

"Este setor [a classe média empobrecida] espera que seus filhos não deixem de ir para a escola, que não se descuidem da saúde. As estratégias de construção do futuro foram um pouco hipotecadas para garantir o dia a dia", disse Feijoo.

Assim vive Mariana. Com 58 anos, distribui panfletos na rua durante oito horas para ganhar 10 pesos diários (menos de US$3).

"Eu e meu marido estamos sem trabalho. Meu filho de 18 anos se mata de trabalhar por nós. Tenho dívidas, impostos atrasados, mil doenças e faço isso para comer. Farei o que for necessário para que minha família não passe fome", afirma.

É o primeiro trabalho que consegue em dois meses e está contente por isso. Já trabalhou no setor administrativo de uma fábrica, que faliu.

Esta é a nova classe média argentina, que teve o horizonte escurecido e agora apenas pensa em como enfrentar o próximo dia.

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