Reuters
14/01/2003 - 10h05

Ditadores argentinos morrem e deixam seus crimes ocultos

da Reuters, em Buenos Aires

Uma hora depois de o ex-ditador argentino Leopoldo Galtieri ser enterrado, ontem, um manifestante que perdeu o pai nas mãos do regime militar (1976-1983) arrancou as coroas de flores e esfregou seu próprio sangue no túmulo.

"A família de Galtieri pelo menos sabe onde depositar coroas. Nossas famílias não têm essa sorte", disse Julio Talavera, 28, filho de um "desaparecido" da ditadura, que sequestrou e matou cerca de 30 mil oponentes.

No terreno jurídico, o tempo conta a favor dos militares. A maioria deles tem entre 70 e 90 anos, e por isso podem levar para o túmulo vários segredos a respeito do paradeiro de suas vítimas. Dois dos ex-ditadores, Roberto Viola e Orlando Agosti, já morreram.

Pouco depois do discreto funeral, acompanhado por um pequeno grupo de parentes e militares, alguns ativistas de defesa dos direitos humanos se infiltraram no cemitério. Talavera cortou sua mão com os espinhos das flores e limpou o sangue no túmulo.

Os funcionários do cemitério assistiram ao protesto sem intervir. Na verdade, é difícil encontrar manifestações de solidariedade a Galtieri, que conduziu o país à desastrosa guerra das Malvinas (1982) e morreu no domingo (5), aos 76 anos, de câncer.



Após duas décadas de democracia, poucos argentinos defendem o regime militar, e vários ex-ditadores agonizam solitários, cercados de protestos, ou estão presos.

"Mais um que cai. Tomara que todos partam antes de mim", disse Adriana, uma idosa que lia as manchetes com a morte de Galtieri em uma banca da capital.

Mesmo mostrando as marcas da idade, vários generais compareceram ao velório, com as fardas impecáveis e boa postura. Mas havia poucos populares e nenhum político. A cobertura da imprensa foi abertamente hostil. "Morreu o amigo do uísque e da tortura", zombou o jornal esquerdista "Página 12", em referência ao alcoolismo de Galtieri.

A guerra das Malvinas, contra o Reino Unido, acabou precipitando o fim do regime militar argentino. Galtieri foi condenado em 1986 por negligência durante o conflito, mas foi incluído na anistia geral.

Apesar disso, a velhice tranquila de Galtieri e dos outros ex-ditadores não estava garantida. Nos últimos anos, vários juízes encontraram brechas nas leis de anistia e levaram os generais à prisão domiciliar, pelo sequestro de filhos recém-nascidos de presas políticas, em centros de tortura.

Protestos
A poucos quilômetros do cemitério, na cama de um hospital naval, está o almirante Emilio Eduardo Massera, o famigerado ex-diretor da Escola de Mecânica da Armada, um centro de tortura que, com suas imaculadas paredes brancas, é um símbolo dos momentos mais terríveis do regime militar argentino.

Massera foi preso antes de sofrer um derrame. Ele está em coma desde então, mas não se livrou dos protestos semanais em frente ao hospital. No Ano Novo, os manifestantes fizeram brindes por "um minuto de felicidade com a agonia de Massera". "Olá, Massera, como está se sentindo hoje", gritavam eles, ironicamente.

Jorge Rafael Videla, outro chefe da junta militar sob prisão domiciliar, também enfrenta protestos frequentes em frente a sua casa, em Buenos Aires.

"Um dos aspectos horríveis desse general arrogante Galtieri é que morreu sem explicar suas ações", escreveu Andrew Graham-Yooll, editor do jornal em inglês "Buenos Aires Herald".

Mas os filhos das vítimas dizem que vão continuar lutando. "Com a morte de Galtieri, a culpa não está punida", disse Talavera em frente ao túmulo, com o sangue pingando sobre seus sapatos.

 

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