Folha Online sinapse  
29/10/2002 - 03h05

A universidade dos sentidos

FÁBIO SEIXAS
enviado especial da Folha de S.Paulo a Milão

No galpão de uma antiga fábrica química, em Milão, na Itália, um grupo de 20 pessoas tenta identificar cheiros. Essências naturais e artificiais se misturam. O desafio é entender, e diferenciar, cada uma delas. Separados dessa turma por uma cortina escura, outros 20 alunos andam descalços por um tapete de diversos materiais e texturas. De novembro a junho, esse é o tipo de rotina da Universidade da Imagem, instituição criada em 1998 cuja missão é potencializar a criatividade de quem passa por lá, apurando os cinco sentidos: olfato, tato, paladar, visão e audição.

Divulgação
Galpão que serve de sede para a Universidade da Imagem. Veja mais fotos

Os alunos são fotógrafos, sommeliers, estilistas, maîtres, chefs de cozinha. Mas também há advogados, jornalistas, engenheiros, arquitetos, executivos de diversas áreas. E, não raro, há quem entre com uma profissão e saia com outra. "Na última turma, tivemos um aluno que entrou fotógrafo e acabou indo trabalhar como sommelier em Barcelona", diz Tania Gianesin, diretora da universidade.

Ela explica os princípios da escola: "Em qualquer processo criativo, as pessoas recebem informações, elaboram esses dados e depois devolvem algo pronto. Com a percepção apurada, esse processamento é muito mais refinado, ganha qualidade."Tania define a universidade como um centro de treinamento para empreendedores. "Não recebemos apenas alunos que querem virar a mesa. Recebemos muita gente que quer se aprimorar na sua profissão".

Divulgação
Fabrizio Ferri, o fotógrafo publicitário e fundador, com alguns alunos da faculdade
A Universidade da Imagem é um braço da Fundação Indústria, comandada pelo romano Fabrizio Ferri, 50, considerado um dos melhores fotógrafos publicitários do planeta. Ferri é um inquieto. Já publicou livros fotográficos e romances, projetou e construiu um resort exclusivíssimo em Pantelleria, na Sicília. Atuou como cenógrafo e também já rodou um curta-metragem em que sua mulher, Alessandra, contracena com o músico inglês Sting.

Esse ritmo é uma das marcas que ele tenta passar aos alunos. "Neste século, a imagem será a principal forma de comunicação, linguagem e literatura. E a percepção inicial, para a elaboração dessas imagens, precisa ser bastante treinada, precisa carregar uma boa dose de cultura", afirma.

Para implantar a universidade, Ferri buscou financiamento de empresas renomadas, como The Body Shop (rede inglesa de produtos cosméticos, com 2.000 pontos de venda em 52 países), Vodafone (maior grupo de telefonia celular do mundo), La Rinascente (maior loja de departamentos da Itália) e Dragoco Gerberding (uma das principais fornecedoras de matérias-primas para a indústria de perfumes).

Fez apenas uma exigência: os patrocinadores não poderiam, de maneira alguma, influir no processo de seleção. A Vodafone, por exemplo, não pode recomendar funcionários para a escola. Com isso, o fotógrafo quis impedir que a universidade se transformasse em subsidiária desses grupos.

O trajeto contrário —alunos recrutados pelas empresas—, porém, é amplamente incentivado. "Nós somos conectados a empresas que sempre precisam de pesquisas, de novos produtos. Elas querem pessoas que entendam seu jeito de trabalhar e que tenham técnicas interdisciplinares", afirma Tania, ela mesmo uma profissional polivalente —formada em economia, é professora de música há 12 anos e atua como jornalista de moda.

Assim, a turma que se formou em junho esteve completamente envolvida, no primeiro semestre, com o "mundo real". Entre outros projetos, os alunos trabalharam em campanhas publicitárias para a Dragoco e fizeram experiências sensoriais com visitantes do Festival Trienal de TV e Web de Milão.

Além das empresas patrocinadoras, outras 60 organizações mantiveram algum tipo de contato com os alunos desde 1998. E é a indústria também a responsável por prover professores para a Universidade da Imagem.

A francesa Françoise Marin nasceu em Grasse, a capital das fragrâncias, e já criou produtos para grifes como Christian Dior e Chanel. Duas vezes por mês, ela viaja a Milão, para lecionar "olfato".

Nas aulas de tato, uma das professoras é a norte-americana Nancy Martin, especialista em fibras e tecidos. Um dos principais desafios que ela leva aos alunos é pedir que, de olhos vendados, eles transformem em palavras as sensações que têm ao tocar uma peça de seda, uma batata, uma alcachofra ou uma folha de papel.

"Aqui, tentamos recuperar o prejuízo. Infelizmente, desde a infância, a necessidade de das pessoas de se tocarem é reprimida", diz a professora, que ensina seus alunos a experimentar tecidos com os lábios —segundo ela, mais sensíveis que a ponta dos dedos.

A "escola dos sentidos" não entrega nenhum tipo de certificado. Mas, apesar disso, do aspecto aconchegante e despojado da construção de 1838 e do animado bar da universidade, o regime de ensino é bastante rígido. O curso dura dois anos e as aulas acontecem de segunda a sexta, no total de 30 horas semanais.

"A passagem para o segundo ano não é automática, depende do progresso alcançado no primeiro estágio. Mas não há nenhum exame. Essa avaliação acontece no dia-a-dia. Sempre há um olho voltado para o que a gente está fazendo", define a crítica literária Miranda Martino, formada na turma inaugural, em 1999.

O curso, ministrado em italiano com tradução simultânea para o inglês, é dividido em cinco módulos, um para cada sentido (veja quadro ao lado). Os alunos precisam obrigatoriamente cumprir todos esses módulos. São proibidos cigarros e celulares.

As matrículas para os programas que começam no próximo mês já estão encerradas. A cada ano, o valor da anuidade varia de acordo com o que a universidade consegue arrecadar junto às empresas patrocinadoras. Em 2002, cada aluno pagou 1.000 euros (o valor total do curso foi de 8.000 euros).O processo de seleção para 2003 começa em março e requer entrevista e a apresentação de um "trabalho criativo".

Arte/Folha Online

Leia mais:
- Enquete: De qual reportagem desta edição você mais gostou?
- Criatividade à flor da pele

     

Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).