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29/10/2002 - 03h01

Preto no (pensamento do) branco

JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA
especial para a Folha de S.Paulo

As discussões em torno do papel do negro na sociedade brasileira contemporânea não podem, sob pena de repetir equívocos do passado, prescindir de um debate acerca das diversas soluções que a inteligência nacional deu, ao longo de nossa história, para aquilo que poderíamos denominar "problemática negra".

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Gravura de Jean-Baptiste Debret

Assim, aproveitando a proximidade da data comemorativa de Zumbi dos Palmares (20 de novembro) e o oportuno lançamento de "Reis Negros no Brasil Escravista" (veja texto na página ao lado), da pesquisadora Marina de Mello e Souza, talvez não seja de todo desinteressante recordar, mesmo que muito sucintamente, alguns escritos (clássicos?) que enfocaram o problema da escravidão e analisaram, por caminhos variados, o lugar dos negros e mestiços na sociedade brasileira.

Sem qualquer pretensão de ser exaustivo ou de compor uma espécie de "lista dos melhores" sobre o assunto, seis ou sete escritos (livros e artigos) podem ser tomados como "modelares", isto é, como indispensáveis não para "descobrir" a "verdade sobre o negro" ou a maneira mais eficiente de abordar o seu contributo para a formação do Brasil, mas antes para compreender os lugares que a sociedade e o pensamento brasileiros lhe têm reservado.

Malgrado o fato de os negros terem sido, por mais de 300 anos, "os pés e as mãos do senhor de engenho", o seu papel na sociedade local demorou significativamente para se tornar um tema relevante do pensamento brasileiro. E isso, por certo, não se deveu à ausência de um volume mais do que assinalável de afro-descendentes nas nossas cidades e fazendas.

Lá pelos idos de 1881, a educadora alemã Ina Von Binzer, por exemplo, deixou registrado, no seu "Aos Meus Romanos" (1885), que o tumulto e o barulho da cidade do Rio de Janeiro tinham lhe causado péssima impressão e que esses e outros incômodos eram causados pela maciça presença negra nas ruas e lares cariocas. Binzer, é claro, não era a primeira e não seria a última estrangeira a observar, com mais ou menos simpatia, que as populações das cidades brasileiras contavam com um grande contingente de afro-descendentes e que estes ocupavam um enorme espaço no cotidiano das casas e na dinâmica produtiva das cidades.

Tamanha presença, no entanto, não correspondia nem de longe —e isso desde os tempos da colônia— a uma igual participação de negros e mestiços nas reflexões da inteligência brasileira. É verdade que, desde os tempos de Fernão Cardim, Ambrósio Fernandes Brandão, Gabriel Soares e Frei Vicente de Salvador, o "negro da Guiné" marcou, aqui e ali, lugar nos escritos produzidos no Brasil.

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Gravura de Jean-Baptiste Debret

O renomado Padre Vieira, na sua obra de maior fôlego, "A chave dos Profetas", chega mesmo a reconhecer uma certa "inteligência e vivacidade" nesses indivíduos e não hesita em colocar na boca de um "escravozinho criado no Colégio da Baía", de nome Bernardo, a seguinte tirada teológica: "Os meus avós e os meus antepassados não estão no inferno. Porque, se eles não conheceram a Deus, como pudera Deus mandá-los para o inferno? Ou como puderam eles ofender tanto a Deus ignorando que merecessem ser assim atormentados?".

Aparições esporádicas à parte, é somente a partir das primeiras décadas do século 19 que negros e mestiços passaram a ocupar um lugar menos periférico no pensamento nacional. Em outras palavras, é somente a partir do ímpeto nacionalista que tomou conta do país depois do desembarque de D. João 6º que a "problemática negra" tomou forma para a inteligência brasileira e suscitou a gradativa composição de uma rede de escritos.

Dentro dessa rede, é imprescindível mencionar as célebres intervenções em defesa do fim da escravidão do editor do jornal "Correio Braziliense" (1808-1822), Hipólito José da Costa; ou o longo ensaio sobre os males econômicos trazidos pelo "cativeiro de negros", publicado pelo influente jornalista e político Francisco S. Torres-Homem nas páginas da revista "Niterói" (1836).

Indispensável, também, para compreender o espírito anti-escravista que, por razões diversas (políticas, econômicas, higiênicas, morais...), começava a ganhar algum fôlego na primeira metade do século 19, é, sem dúvida, "Representação à Assembléia Constituinte do Brasil sobre a Escravatura" (1824), de José Bonifácio de Andrada. Nesse documento, em que o renomado político aponta o caráter selvagem da escravidão e o desserviço por ela prestado ao desenvolvimento social do país, encontramos o seguinte apelo: "É tempo, e mais que tempo, (...) que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes. É da maior necessidade ir acabando com tanta heterogeneidade física e civil".

Posição igualmente abolicionista, e progressista para a época, defende o médico e romancista Joaquim Manuel de Macedo no seu hoje pouco conhecido "As Vítimas-Algozes" (1865). Não se trata, bem entendido, daquele abolicionismo que encontramos nas obras de poetas como Castro Alves ou de políticos como José Bonifácio e Joaquim Nabuco. Como esclarece Macedo, na nota introdutória da obra mencionada, não lhe interessou pintar "o quadro do mal que o senhor, ainda sem querer, faz ao escravo", mas, sim, o "quadro do mal que o escravo faz de assento propósito ou às vezes irrefletidamente ao senhor".

Dito de maneira clara, o romance antiescravista de Macedo quer convencer os seus leitores de que é preciso libertar os escravos não por razões humanitárias ou econômicas, mas porque os cativos introduzem a corrupção física e moral no seio das famílias brancas. Tal argumento, que hoje nos soa completamente esdrúxulo, desempenhou um papel sobremodo importante na formação do sentimento de repúdio pela escravidão que tomou conta da população brasileira nas últimas décadas do século 19.

Outra perspectiva "modelar" da escravidão e da situação dos negros e mestiços na sociedade brasileira nos é oferecida pelo referido Joaquim Nabuco, no seu instigante "O Abolicionismo" (1884), um livro que, não obstante as aparências e as sugestões de parte da fortuna crítica, está bem longe de ser somente um libelo contra a escravidão.

Esclarece-nos Nabuco que o cativeiro de negros não é apenas mais um dos problemas estruturais do Brasil, mas o problema por excelência, pois sobre ele construímos política, econômica, social e moralmente o país. Operando tal inversão, o intelectual pernambucano redefine os termos da problemática escravista. O abolicionismo ganha os contornos de um movimento pela completa reconstrução das instituições nacionais, e o abolicionista, a força de um reformador que tem urgência em alterar o modo de conduzir o país, estagnado e corrompido pela prática escravista.

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Escravo em foto do séc. 19, por Christiano Jr.
Findada a escravidão, começam a vir à luz os trabalhos do renomado médico baiano Raimundo Nina Rodrigues, um dos pioneiros no estudo da cultura negra no Brasil. Nina Rodrigues inaugura no país um modo de abordar a problemática negra que teria célebres seguidores, como Euclides da Cunha, José Veríssimo e Rio Branco.

Para esses homens, afinados com os discursos racistas e supostamente científicos de um Arthur Gobineau (1816-1882) ou de um Gustave Le Bon (1841-1931), o contingente de negros e mulatos da população brasileira —"homens degenerados" e condenados ao atraso cultural e material, como se dizia na época— constituía uma enorme barreira ao progresso do país, barreira que só poderia ser superada se a população local, por meio da maciça importação do colono europeu, sofresse um gradativo processo de "branqueização".

Tal perspectiva, que deixaria marcas profundas no imaginário do brasileiro, perceptíveis até hoje, começa a sofrer forte oposição após a Primeira Guerra Mundial e a entrar em desuso, tanto no Brasil como no estrangeiro, no início da década de 30. Contributo sobremodo importante para essa derrocada veio de duas obras inovadoras para a época: "Casa-Grande & Senzala" (1933), de Gilberto Freyre, e "O Negro Brasileiro" (1934), de Arthur Ramos.

"Casa-Grande & Senzala", como é sabido, deixa transparecer a forte influência que recebeu Gilberto Freyre das teorias antropológicas em voga nas universidades norte-americanas nas décadas iniciais do século 20, especialmente da antropologia cultural de Franz Boas. Primeira parte de uma trilogia, o livro aborda o período colonial, promovendo uma espécie de reabilitação do contributo negro para a formação do país e uma reavaliação da até então malvista miscigenação do povo brasileiro.

Freyre, lançando mão de uma magistral técnica expositiva, rejeita o determinismo biológico, analisa os supostos males oriundos da herança mestiça em termos socioculturais e acaba por exaltar a "mistura de raças" como poderoso agente de democratização social. O sociólogo, em suma, retira a carga negativa que pairava sobre a nossa mestiçagem e a transforma no símbolo maior da cultura brasileira.

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Escravo em foto do séc. 19, por Christiano Jr.
As posições de Ramos estão profundamente distantes dessa construção freyriana que transforma a mestiçagem racial e cultural de mácula em orgulho nacional. O baiano, sob forte influência do sociólogo francês Lucien Lévi-Bruhl (1857-1939), abandona sem dúvida as teorias racistas que pautaram o trabalho de seu mestre Nina Rodrigues e, tal como Freyre, norteia suas análises pelo conceito de cultura.

Ramos, no entanto, não abre mão de um certo evolucionismo cultural, que o conduz a encarar a cultura negra como inferior à branca e passível de ser sobreposta por esta. É o próprio autor que, na introdução de sua obra, explica: "Estudando (...) as representações coletivas das classes atrasadas da população brasileira (...), não endosso absolutamente (...) os postulados de inferioridade do negro e de sua capacidade de civilização. Essas representações existem em qualquer tipo social atrasado em cultura. (...) Assim, para a obra da educação e da cultura, é preciso conhecer essas modalidades do pensamento primitivo, para corrigi-lo, elevando-o a etapas mais adiantadas (...)".

Ainda que, vez ou outra, continuemos a nos deparar com argumentos como esses, o estudo de Ramos não alcançou, nem de longe, a popularidade de "Casa-Grande & Senzala", sem sombra de dúvida a obra, do ponto de vista que aqui nos interessa, mais importante da série apresentada. Foi em grande parte das páginas desse polêmico livro que o brasileiro extraiu a idéia, ainda viva e operante no senso comum local, de que somos um povo cujo maior contributo para a história da humanidade foi ter levado a bom termo a mistura de sangues e culturas —ter supostamente edificado uma "democracia racial".

É sempre possível e legítimo discordar de Freyre. Não é possível, no entanto, deixar de reconhecer a força de sua solução para a problemática negra, que ganhou ares de naturalidade e passou a ser componente fundamental da auto-imagem do brasileiro e da imagem que o estrangeiro geralmente tem de nós.

Ainda que em menor intensidade, os outros escritos mencionados também deixaram suas marcas no repertório intelectual nacional, marcas que só poderemos exorcizar devidamente quando for o caso se aprendermos a identificar, ao longo da nossa história, as várias construções da tal "problemática negra" e, a partir daí, elaborar uma reflexão crítica acerca dos papéis que a nossa sociedade atribuiu e, em larga medida, ainda atribui aos negros e mestiços. A leitura das obras arroladas acima é um bom começo.

Jean Marcel Carvalho França é professor do departamento de história da Unesp/Franca e autor, entre outros, de "Imagens do Negro na Literatura Brasileira" (Editora Brasiliense, 1998) e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio, 2000). Seu hobby é praticar, amadora mas religiosamente, ciclismo e corrida de fundo.

Leia mais:
- Gênese da identidade afro-brasileira
- Conheça títulos sobre a escravidão e os negros no Brasil
- Leia a introdução do livro "Reis Negros no Brasil Escravista"

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