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29/10/2002 - 03h29

Viagem sem fim

FLÁVIO FERREIRA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Viagens culturais não começam na partida. Nem acabam na chegada. Elas se iniciam quando o interesse em desbravar um universo desconhecido se manifesta pela primeira vez. E só terminam quando, ou se, esse interesse desaparecer. Para quem quer esticar indefinidamente o espírito de férias, aí está uma fórmula.

AFP
Acrópole de Atenas (Grécia)

Planejar uma viagem cultural antecipa a aventura que se irá viver. Uma estada na Grécia, por exemplo, pode começar com décadas de antecedência, numa leitura de Monteiro Lobato. Assim aconteceu com o executivo de marketing Paulino Brancato Jr., 68, que, sem saber, começou a preparar suas férias de 1989 e 1997 ainda na infância.

Foi a partir das peripécias da turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo no mundo da mitologia grega que Brancato entrou em contato com a cultura das terras mediterrâneas. "Minha presença na Grécia foi o ponto alto da viagem que começou nos livros. Pedrinho, Narizinho e Emília foram meus companheiros de viagem", brinca o executivo.

Férias culturais não precisam, necessariamente, ser planejadas durante uma vida inteira. Mas a preparação demanda mais tempo do que reservar hotéis e fazer as malas.

O advogado Davi Soares da Silva, 32, levou três meses pesquisando sobre o Zimbábue (centro-sul da África), seu destino em 1997. Sem acesso a guias turísticos do país —as editoras se concentram nos lugares mais visitados—, ele recorreu aos livros de história.

Adriana Zehbrauskas/Folha Imagem
Parque Nacional de Hwange, Zimbábue

Silva mergulhou em leituras sobre a colonização da África. Nas obras sobre a vida do caçador de diamantes e colonizador inglês Cecil John Rhodes (1853-1902), obteve as melhores informações. A importância de Rhodes pode ser medida pelo fato de o país, até 1980, ter se chamado Rodésia em sua homenagem. "Conhecer os caminhos de Rhodes na busca de pedras preciosas e na montagem da infra-estrutura colonial inglesa foi fundamental para definir o meu roteiro", conta o advogado.

A jornada de Silva durou 20 dias. Grande parte do tempo foi dedicada a conhecer as comunidades nas beiras das estradas. Ao final das férias, tinha estabelecido profunda relação com aquele povo. "Fiquei tão ligado ao Zimbábue que sinto que minha viagem ainda não acabou", diz. "Sempre procuro saber o que está acontecendo lá. Na internet, ou nos pés das páginas do noticiário internacional dos jornais, minha viagem continua."

Viagens em que o interesse histórico se sobrepõe ao turístico costumam afastar os visitantes do óbvio. Barcelona, na Espanha, tem um mundo além de Antoni Gaudí (1852-1926), o arquiteto modernista que deu a cara da cidade. Mas é preciso descobri-lo por caminhos incomuns. Foi o que fez o produtor e diretor de TV Marcelo Machado, 44. De passagem por Barcelona, decidiu escapar do roteiro padrão por uma manhã, dedicando-a a uma visita a um hospital.

Nos oito anos em que esteve ligado à agência de propaganda DPZ, Machado viajou a trabalho para Barcelona diversas vezes, e sempre achava tempo para conhecer mais a cultura catalã. Tendo já explorado o universo de Gaudí, passou a procurar projetos de precursores e contemporâneos do mestre modernista. Assim, foi parar no Hospital de La Santa Creu i Sant Pau, obra do arquiteto Lluís Domènech i Montaner (1850-1923). A partir daí, para Machado, Barcelona nunca seria mais apenas Gaudí.

Iniciativa similar teve a microempresária Rosana Alves, 36, ao passear em Porto Seguro, na Bahia. Apesar de ter embarcado num pacote convencional, não se contentou com as praias e os shows de axé. No primeiro dia, enquanto seus companheiros de excursão partiram em busca de sol, ela se embrenhou na cozinha do hotel, iniciando a viagem a partir da gastronomia local.

Chiaki Karen Tada/Folha Imagem
Casa Milá, de Gaudí, em Barcelona (Espanha)
Conversou com os cozinheiros para saber as origens dos pratos baianos, e o bate-papo a remeteu a lugares e hábitos pouco conhecidos dos turistas. Descobriu que, nas proximidades, havia uma tribo dos índios pataxós e, com a ajuda de uma moradora, passou algumas horas na companhia dos indígenas. Em vez dançar o "tchan", Alves preferiu coletar histórias diferentes. Pode-se dizer que ela e o restante do grupo visitaram duas Porto Seguro.

Alves, Machado, Silva e Brancato são exceções. Turistas não costumam ser tão antenados na cultura local. Tasso Gadzanis, presidente da Abav (Associação Brasileira de Agências de Viagens), identifica um perfil consumista no brasileiro em férias. "Em geral, ele procura compras quando viaja", afirma. "Se vai a Paris, passa uma hora no Museu do Louvre e gasta cinco sacolando nas Galeries Lafayette; se vai a Nova York, fica meia hora no Museu de Arte Moderna e passa uma tarde inteira na loja Macy's."

Para Gadzanis, o Brasil tem um potencial praticamente inexplorado. "Poderíamos ter aqui roteiros inspirados nas obras do escritor Jorge Amado", exemplifica. E compara: "Em Cuba, o governo restaurou os lugares em que Ernest Hemingway (1899-1961) viveu, e hoje eles são destinos procuradíssimos pelos turistas que vão ao Caribe".

Conhecer o mundo do Prêmio Nobel de Literatura e autor de "O Velho e o Mar" era um dos objetivos dos irmãos e estudantes universitários Marcella, 22, e Luiz Homero Distrutti, 21, na sua viagem de julho último. "Nossa principal curiosidade era conhecer como funcionava o regime de Fidel Castro, mas o contato com a rica cultura da ilha foi tão interessante quanto sentir na pele as vantagens e desvantagens do socialismo cubano", diz Marcella.

Cuba, Porto Seguro, Barcelona, Zimbábue, Grécia —não importa o destino. Poderia ser o Rio monárquico, o Nordeste pré-histórico, a Bahia barroca, o Sul das Missões ou as cidades mineiras do Ciclo do Ouro —apenas para citar os roteiros sugeridos nas páginas seguintes. Não importa o destino, mas a bagagem cultural, para a qual não há limite de peso.

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