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29/10/2002 - 03h27

Aventuras de um Nobel

REINALDO JOSÉ LOPES
free-lance para a Folha de S.Paulo

O físico americano Richard Phillips Feynman (1918-1988) não era a figura científica convencional que se esperaria de um vencedor do Nobel e de um dos consolidadores da física quântica. Além da compreensão profunda dos princípios matemáticos e físicos da ciência moderna, os traços mais marcantes de Feynman eram o senso de humor e a curiosidade insaciável sobre o mundo —refletida na paixão do físico por conhecer lugares "fora do mapa" (e qualquer roteiro turístico) em suas viagens.

Convidado pela Universidade de Tóquio para uma série de conferências no Japão, em 1986, Feynman e sua mulher Gweneth fizeram questão de conhecer o que ele chamava de "lugares no meio do nada, dos quais nós nunca tínhamos ouvido falar, lugares que não têm nada". O casal quase levou seu anfitrião japonês à loucura ao ver um mapa de ferrovias do país e espetar o dedo no fim de uma das linhas: uma cidadezinha chamada Iseokitsu. "É para lá que queremos ir", disse Gweneth.

Em Iseokitsu não existiam hotéis, mas a sete quilômetros da cidade havia um pequeno albergue tradicional japonês. Ao saber da intenção de Feynman de se hospedar lá, o dono do estabelecimento tentou se esquivar, dizendo que eles não tinham banheiros ao estilo ocidental. O físico não titubeou e transmitiu a seguinte ordem ao intérprete: "Diga a eles que, da última vez que eu e minha mulher viajamos, levamos conosco uma pequena pá e papel higiênico e cavamos buracos para nós na areia. Pergunte a eles se precisamos levar nossa pá".

A tal pá não foi necessária, no fim das contas, mas o casal Feynman foi para o pequeno albergue (recusando hotéis em estilo ocidental oferecidos pelos organizadores da viagem do físico) e seguiu por outras cidadezinhas do interior e do litoral japoneses, conhecendo pequenos templos xintoístas e fazendo amizade com sacerdotes e fiéis, apesar da barreira linguística. Tudo para aproveitar o que Feynman considerava uma mistura única de tradição e modernidade existente no país.

No Brasil —onde o pesquisador passou dez meses ensinando física no Rio de Janeiro, em 1950—, Feynman aproveitou para aprender a tocar bongô e, claro, desfilou durante o Carnaval. Seu contato com estudantes brasileiros de física que iam se tornar professores o levou a criticar o sistema educacional do país. Feynman notou que seus alunos sabiam equações complicadíssimas de cor, mas não conseguiam aplicar esse conhecimento para entender fenômenos reais.

Ao voltar para os Estados Unidos num navio, o físico se deteve por um dia na pequena Trinidad e Tobago, nas Antilhas. E, como de costume, pediu a um taxista de Port of Spain, a capital do país, que o levasse às regiões mais pobres da cidade, para conversar com as pessoas e "ver como a vida é lá embaixo", como dizia.

A viagem mais lendária do cientista, contudo, talvez tenha sido a que ele não conseguiu fazer. Quando menino, Feynman colecionava selos de Tannu Tuva, uma pequena e montanhosa república asiática entre a Rússia e a Mongólia. O país foi incorporado à então União Soviética em 1944, mas Feynman descobriu que ele continuava sendo uma região autônoma e decidiu ir até lá. A burocracia soviética, porém, acabou vencendo o físico, que morreu sem conhecer a região.

As histórias de viagem do cientista podem ser conhecidas nos livros "Deve Ser Brincadeira, Sr. Feynman!" (Editora da UnB) e "What Do You Care What Other People Think?" (Unwin Hyman) —este último, só disponível em inglês.

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