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26/11/2002 - 02h49

USP experimenta curso novo de humanidades

FLÁVIO DIEGUEZ
GILBERTO STAM

free-lance para a Folha de S.Paulo

A Universidade de São Paulo (USP) começa a testar um novo curso na área de humanas que pode servir como resposta às centenas de estudantes que chegam ao terceiro grau ainda indecisos sobre a escolha da carreira. Trata-se de um curso ainda experimental, de caráter interdisciplinar, que já foi aprovado no Conselho Universitário, mas precisa de algumas resoluções práticas para acontecer.

Ed Viggiani - 17.ago.00/Folha Imagem
O professor titular de filosofia da USP Renato Janine Ribeiro, em sua casa, em São Paulo

O curso experimental de humanidades nasce, provavelmente no início do ano que vem, de uma proposta do filósofo Renato Janine Ribeiro, professor titular da universidade. A inspiração vem do curso de ciências moleculares, inaugurado em 1992, que visa unicamente a formação de pesquisadores. Na sua 11ª turma, o ciências moleculares tem um balanço positivo.

"Todos os alunos formados estão em posição de pesquisa ou desenvolvimento, muitos deles no exterior e com artigos publicados em revistas de circulação internacional", diz Lucile Winter, professora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e coordenadora do curso. "Esses alunos tiveram a chance de compor seu próprio currículo e transitar por toda a universidade, aumentando o intercâmbio com outras áreas de conhecimento."

Como o ciências moleculares, o novo curso de humanidades não fará parte do vestibular. Será aberto apenas a quem já é aluno da USP e que tenha cursado pelo menos um ano de graduação, em qualquer área. Os interessados deverão passar por um processo seletivo que incluirá uma prova, mas que não será como o vestibular.

Quando se formar nesse curso —depois de quatro anos—, o aluno terá três opções: sair da universidade com o diploma de "bacharel em humanidades" (cuja única habilitação é fazer pós-graduação ou trabalhar em algo que não exija diploma, como crítico de arte); voltar para a unidade original e ficar com dois diplomas, no final de ambos os cursos; ou passar diretamente para um programa de pós-graduação.

A idéia é que os 25 alunos do curso de humanidades tenham a mesma rara oportunidade de, durante a graduação, fazer seus estudos livres das convencionais barreiras entre as disciplinas. Dito de outra maneira, o projeto quer introduzir a interdisciplinariedade na área de humanas.

Logo nos dois primeiros anos, o aluno entrará em contato com as diversas linguagens das ciências humanas, com ênfase em filosofia, literatura e artes, mantendo sempre um ponto de conexão entre elas.

Arte/Folha Online

No primeiro semestre, por exemplo, a proposta é que o curso de literatura disseque a figura do herói problemático que passa por mil provações e, mesmo assim, não triunfa —basta lembrar de Dom Quixote, Madame Bovary e Tom Jones, entre tantos outros. Esse herói servirá de contraponto no curso de filosofia, que vai abordar a ambição do homem moderno de dominar a natureza pela razão e pela ciência, temas presentes nos filósofos Francis Bacon, inglês, e René Descartes, francês. Em história, a globalização no século 16 pode demonstrar os estragos e as feridas geradas por esse projeto triunfal do Ocidente.

A partir do terceiro ano, os alunos partirão para uma trajetória própria e, acompanhados de perto por um orientador, escolherão as matérias que desejam cursar de acordo com seu interesse de pesquisa. Dependendo das possibilidades, essas matérias poderão ser cursadas até mesmo fora da USP.

O projeto que deu origem ao curso está explicado por Janine no livro "Humanidades: um Novo Curso da USP" (Edusp, R$ 17). Além de esclarecer o tema central, trata-se de uma leitura instigante sobre os rumos da universidade.

Divulgação
Apesar de bem aceita, a proposta de Janine não é consensual. "Ela é muito interessante", diz a professora Marilena Chauí, sua colega no departamento de filosofia. "Mas tem dois problemas: um é que o número de vagas oferecido é muito pequeno para a demanda. Além disso, como a greve demonstrou, temos uma carência profunda de professores na graduação, e o que precisamos é de um projeto de renovação das áreas já existentes. O ideal seria um curso complementar, para aprimorar a graduação."

Janine, por seu lado, acredita que o curso possa ser uma barreira eficaz contra a evasão escolar. "Ela tem um significado mais amplo do que problemas internos do curso, como professores despreparados e bibliotecas desatualizadas", diz ele. "Tentar conter a evasão é o mesmo que forçar os pedestres a andar sobre um caminho pavimentado, quando o mais rápido é passar sobre a grama. O ideal seria colocar lajotas sobre o caminho que já foi aberto."

Para ele, o objetivo principal do curso é promover o que chama de "poliglotismo cultural", ou seja, a capacidade de transitar entre as várias linguagens das humanidades para interpretar o mundo. Exemplo disso é a disciplina de projeto, que terá como tema a cidade de São Paulo. Dentro da visão interdisciplinar, ela deverá ser esmiuçada sob os pontos de vista da sociologia, da arquitetura, da antropologia, da história, das artes, da literatura e da psicanálise.

Na proposta, a filosofia deve ter papel central. "Ela vai treinar os alunos a serem leitores atentos e rigorosos, capazes de compreender não só o que o autor disse, mas por que disse e qual o movimento interno de seu pensamento", afirma a filósofa Olgária Matos, uma das prováveis professoras do curso. "O importante não são as conclusões, mas a intimidade com o pensamento do autor."

Já a literatura deverá desenvolver habilidades que permitirão ao estudante prestar atenção nas imagens, metáforas e figuras de linguagem, tornando possível uma leitura mais completa dos textos do que a utilitarista. "Vamos usar também as listas dos grandes clássicos do tipo 'os cem mais'. Será algo barato de fazer, já que não estamos preocupados com a quantidade", diz Janine.

Os clássicos funcionam como um ponto de referência. "Como a universidade não pode acompanhar o ritmo do mercado, deve ajudar a desenvolver características fundamentais, como a capacidade de reflexão e de aprendizado, investindo na formação de uma base sólida para que, em meio a mudanças, o aluno saiba navegar", defende Janine no livro "Humanidades".

As matérias podem mudar a cada turma, assim como os professores e o tema do projeto. O caráter experimental do curso tem como objetivo fazer com que ele sirva de espaço para novas reflexões sobre o ensino em humanas e sobre a universidade. "O conhecimento é como uma caixa de armar, um quebra-cabeças que pode ser combinado das mais diversas formas", diz Ribeiro. "Os resultados podem ser surpreendentes."

Leia mais:
- Nos EUA, clássicos formam jovens
- Leia apresentação do livro "Humanidades: um Novo Curso da USP"

Links relacionados:
- Humanidades (Naeg-USP): http://naeg.prg.usp.br/humanidades

     

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