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26/11/2002 - 02h52

O antropólogo em busca do inesperado

REINALDO JOSÉ LOPES
free-lance para a Folha de S.Paulo

Quando se aposentar, no ainda distante dia 18 de outubro de 2010 —uma data da qual diz não abrir mão—, o antropólogo Walter Alves Neves, 45, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP, vai poder dizer tudo, menos que sua carreira científica foi monótona. Da chacoalhada dada por seu trabalho no marasmo em que havia se transformado o estudo da pré-história do Brasil e da América (sugerindo que um povo semelhante aos atuais africanos e australianos foi o primeiro dono do continente) às suas peripécias como divulgador de ciência (entre as quais, ensinar rudimentos de evolução humana ao músico britânico Sting), Neves sempre esteve às voltas com o inesperado.

Caio Esteves/Folha Imagem
Walter Neves no Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos, no Instituto de Biociências da USP

E isso a começar por uma infância "extremamente pobre", como ele ressalta, na pequena cidade de Três Pontas, no sul de Minas Gerais —a mesma onde cresceu o cantor Milton Nascimento, cujo pai foi professor de matemática de Neves. "Desde os sete, oito anos, as pessoas perguntavam o que eu queria ser, e eu dizia 'um cientista'."

Hoje, o antropólogo credita ao pai, um pescador inveterado que levava os filhos a andar por quase todo o cerrado, e à mãe, uma grande coletora de frutos silvestres, a paixão pela ciência: nessas andanças, ele e o irmão conheceram quase tudo, menos um morro que ficava a cerca de um quilômetro de sua casa e era a única barreira da paisagem. A curiosidade, especula o pesquisador, foi canalizada para a ciência. "Sou cientista porque nem meu pai nem minha mãe subiram comigo para mostrar o que tinha atrás daquele morro, por nunca ter visto 'over the rainbow'", diz Neves.

Raio-X:

Nome: Walter Alves Neves, 45 anos
Estado civil: solteiro
Formação: biólogo e antropólogo físico, com doutoramento pela USP e pós-doutoramento pelo Center for American Archaelogy, em Campsville (Estado de Illinois, EUA)
Profissão: professor e pesquisador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da USP
Hobbies: "Minha própria profissão. Quem gosta do que faz profissionalmente não precisa de hobby"
Livros publicados: "Antropologia Ecológica: um Olhar Materialista sobre as Sociedades Humanas" (Cortez, 1996); "Ecologia Humana" (Atheneu São Paulo, 2002)

A chance de dar uma espiadela do outro lado do arco-íris da evolução humana ficou um pouco mais palpável quando a família resolveu trocar Três Pontas por São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo, em 1970. Embora todos tivessem de trabalhar —o pai e a mãe, pedreiro e vendedora de Yakult, o menino de 13 anos e seu irmão mais velho—, o acesso a boas escolas e bibliotecas públicas permitiu que Neves pensasse em cursar história na USP, enquanto galgava degraus, de office-boy a assistente de gerência, na fábrica da Rolls-Royce.

"Como todos que querem trabalhar em arqueologia, eu pensava logo em história. Mas fui fazer biologia porque [a arqueóloga] Dorath Uchôa disse que isso era um erro absoluto, já que eu queria trabalhar com antropologia biológica aplicada à pré-história", conta o pesquisador.

Depois de encarar o curso noturno na USP, trabalhando o dia inteiro, o jovem biólogo iniciou uma tumultuada carreira de pesquisador no Instituto de Pré-História, batendo de frente com o que ele considerava um tipo de pesquisa totalmente ultrapassado. "Logo percebi que não tinha um lugar no Brasil onde eu poderia aprender antropologia biológica. Os profissionais que existiam aqui trabalhavam como se estivessem no século 19. Um horror, uma coisa descritiva, tipologista, raciológica. Por isso, fui autodidata por um período grande", afirma Neves.

O pesquisador conta que, junto com a arqueóloga Solange Caldarelli e a museóloga Cristina Bruno, buscou jogar uma lufada de ar nesse ambiente sem idéias novas desde Charles Darwin. A tentativa o levou a fazer uma parte de seu doutorado nos EUA, em 1982, onde trabalhou com dois dos maiores estudiosos modernos da evolução humana: o geneticista Luigi Luca Cavalli-Sforza, na Universidade Stanford, e o paleantropólogo Tim White, na Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Estreitou então seus laços com a genética, cuja grande estrela, hoje, são os projetos de transcrição do genoma, muito criticados por Neves. "Foi muito interessante. Eu era massacrado pela velha geração da arqueologia e só sobrevivi porque fui adotado por Oswaldo Frota-Pessoa e por Francisco Salzano [ambos geneticistas]", afirma o antropólogo.

A renovação que Neves e suas colegas propunham acabou sendo barrada, quando, em 1985, eles foram demitidos. "Eu fui colocado para fora da USP", enfatiza. "Por isso digo que, na genética brasileira, conheci os cientistas mais brilhantes e os seres humanos de maior estatura, enquanto tive contato, na arqueologia, com os cientistas mais medíocres e os seres humanos mais reptilianos e vis", ataca.

Os tempos de vacas magras não duraram para sempre: Neves acabou sendo convidado, no ano seguinte, para criar um núcleo de estudos de biologia e ecologia humana no Museu Goeldi, em Belém (PA), e se apaixonou pela primeira vez na vida —pelo especialista em marketing Wagner Fernandes. "Eu queria levá-lo para Belém e fui falar com o reitor da Universidade Federal do Pará para saber se eles não poderiam absorver meu companheiro como professor de vídeo. O reitor disse que seria possível, mas perguntou se eu era petista. Eu não entendi nada: 'É, petista. Por que você o chama de companheiro?'. Aí eu tive de explicar: 'Não, professor, ele é meu marido'. Ele ficou lívido, claro, mas aí deu tudo certo", conta o pesquisador. Fernandes morreu de Aids depois de uma relação de quase sete anos, em 1992. "Nem que eu viva mil anos vou esquecê-lo", diz Neves, que voltou para São Paulo e para a USP durante os últimos meses de vida do companheiro.

Em Belém, Neves teve a chance de estudar as singulares condições amazônicas e se envolver com problemas como a demarcação das terras dos índios caiapós —causa defendida por Sting, cuja ONG, a Fundação Mata Virgem, contava com a assessoria do antropólogo. "O Sting tinha um coração de ouro, coitado, mas, na questão antropológica, ele só tinha dois neurônios", brinca o pesquisador.

E foi na Amazônia, totalmente por acaso, que Neves começou a criar sua reviravolta particular na história da ocupação humana da América. Designado para representar o Museu Goeldi num congresso na Suécia, ele deu "uma paradinha" em Copenhague, onde um museu abriga a coleção de crânios de homens pré-históricos da região mineira de Lagoa Santa, coletados no século 19 por Peter Wilhelm Lund (1801-1880), pioneiro da paleontologia e da arqueologia no Brasil. Neves tirou diversas medidas dos crânios e mostrou os dados para seu colega argentino Héctor Pucciarelli, da Universidad Nacional de La Plata.

"Eu falei para o Héctor: 'Vamos comparar os dados de Lagoa Santa com os de populações do mundo inteiro e mostrar para o povo aqui do Brasil que a ocupação da América é chata mesmo, não passa de 11 mil e poucos anos, e que todo mundo que entrou aqui é siberiano'". Belo plano, se não fosse pelos fatos: "Quando vimos que os crânios eram mais similares aos de africanos e australianos, e não aos de mongolóides, cara, nós piramos o cabeção", brinca Neves.

A conclusão desafiava o dogma arqueológico do "Clovis first" ou "Clovis primeiro" (batizado com o nome do sítio de Clovis, no Novo México), segundo o qual a ocupação da América não tinha mais que 11.500 anos e tinha sido feita só por mongolóides —gente com os mesmos traços dos atuais chineses, japoneses e indígenas.

O CAMINHO DO POVOAMENTO DAS AMÉRICAS
Arte/Folha Online

A teoria, publicada em periódicos científicos pela primeira vez em 1989 e defendida por Neves com unhas e dentes durante os anos 90, só ganhou visibilidade em 1998, com a análise do crânio de "Luzia" —a mulher de traços negróides achada na região de Lagoa Santa (a 50 km de Belo Horizonte, MG) que, até hoje, é o ser humano mais antigo do continente, com 11.500 anos. Ou seja, o povo de Luzia precisaria ter chegado vários milênios antes ao estreito de Bering. "Até Luzia, nosso trabalho foi minimizado, porque não batia com o modelo predominante e não tinha sido feito por americanos", explica o cientista.

Para Neves, o modelo dos chamados dois componentes biológicos —de um povo com traços africanos ou australianos sendo substituído pelos índios modernos, mongolóides— só ganhou força porque os próprios americanos estavam desafiando as velhas certezas. Primeiro, em 1997, houve a publicação de Monte Verde (sítio do Chile com 12.500 anos) e, depois, do Homem de Kennewick (outro esqueleto antigo não mongolóide achado no Estado de Washington, EUA). "E aí a Luzia pipocou, num momento em que os americanos já não tinham mais como esconder a sujeira do 'Clovis first' debaixo do tapete", afirma.

Isto é Walter Neves:

'Sou cientista porque nem meu pai nem minha mãe subiram comigo para mostrar o que tinha atrás daquele morro, por nunca ter visto 'over the rainbow'

'Tive contato, na arqueologia, com os cientistas mais medíocres e os seres humanos mais reptilianos e vis.'

'O Sting tinha um coração de ouro, coitado, mas, na questão antropológica, ele só tinha dois neurônios.'

'Se houvesse um índice de mediocridade científica, eu estaria nesse limiar. São 50 milhões de pessoas passando fome neste país, e eu aqui, medindo esqueleto pré-histórico, compadre!'

"O que vai acontecer na antropologia biológica, se a gente não tomar cuidado, é que quem vai entrar para a história como os grandes descobridores de que a América teve duas populações biologicamente distintas são os americanos. Tiram as mesmas conclusões, montam o mesmo cenário e nos citam marginalmente. Mas tem uma coisa que eles não têm", arremata Neves, com ar conspiratório. "Eles não têm os 75 crânios antigos de Lagoa Santa [caso único no continente] e não têm Lagoa Santa. De uma forma ou de outra, eles vão ter de vir beber na nossa mão. Desta vez eles mexeram com o 'cucaracha' errado. Pela primeira vez o Brasil tem 'fossil power'." Não por acaso, Neves está conduzindo um megaprojeto paleantropológico na região, com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

Competência, senso de humor e paixão pela polêmica costumam ser citados por colegas como seus traços mais marcantes. "Considero Walter como personalidade das mais importantes no cenário científico brasileiro e mundial. Sua personalidade polêmica dá colorido especial às discussões em que se envolve", diz o antigo mentor, Francisco Salzano, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O reconhecimento dos pares também comporta críticas. "Conheço Walter há quase 20 anos. Ele é um pensador original e disciplinado, e a convivência com ele foi muito inspiradora. Sua maior qualidade é um senso de humor refinado, mas creio que ele gasta tempo e energia falando mal da arqueologia brasileira. A área mudou muito nos últimos 20 anos, graças, em parte, à sua própria atuação. Ele provavelmente dirá que eu sou um otimista ingênuo", afirma Eduardo Góes Neves (que, apesar do sobrenome, não é seu parente), pesquisador do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.

Mas Neves é autocrítico sobre a importância de seu trabalho. "Se eu estivesse um milímetro acima da minha mediocridade, pegaria meu paletó e iria para casa. São 50 milhões de pessoas passando fome neste país, e eu aqui, medindo esqueleto pré-histórico, compadre! Por isso, eu tenho de ter certeza de que estou fazendo o meu máximo."

Links relacionados:
- Universidade de São Paulo: www.usp.br
- University of California, Berkeley: www.berkeley.edu
- The Center for American Archeology: www.caa-archeology.org
- Museu Goeldi: www.museu-goeldi.br
- Fapesp: www.fapesp.br

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