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17/12/2002 - 02h36

Lugar de mulher não é na reitoria

SUZANA BARELLI
free-lance para a Folha de S.Paulo

Évisível a desproporção entre o número de mulheres no corpo docente e nos postos de comando das universidades. Enquanto nas salas de aula há um certo equilíbrio entre os sexos, nas salas da diretoria chama a atenção a esmagadora maioria masculina. Nas universidades federais, as mulheres representam 42% do corpo docente e menos de 10% dos reitores.

Arquivo/PUC-SP
Nadir Kfouri, então reitora da PUC-SP, durante invasão da Polícia Militar em 1977

Nas universidades federais, as mulheres representam 42% do corpo docente e menos de 10% dos reitores. Em números absolutos, apenas cinco delas ocupam o cargo máximo na reitoria. Em algumas instituições, o desequilíbrio é ainda maior. Na PUC-SP, elas são maioria no quadro de professores (933 mulheres para 820 homens), mas só duas ocuparam o comando em toda a história da escola. Na USP e na Unicamp, lugar de mulher é, no máximo, na diretoria: as duas universidades nunca tiveram uma reitora.

Por que as mulheres mandam tão pouco nas universidades em que ensinam? Não há uma resposta única, mas uma combinação de fatores —como o preconceito e a entrada tardia das mulheres na universidade— fornece algumas pistas. "As mulheres começaram a se preparar mais tarde para a vida acadêmica, no final da década de 1950, início dos anos 60, e isso retardou a nossa chegada aos postos de comando", afirma a professora Ivette Senise Ferreira, 68. Ela fala com conhecimento de causa: em agosto passado, encerrou seu mandato de quatro anos como a primeira mulher a ocupar a diretoria da tradicional Faculdade de Direito da USP, escola fundada em 1827. "Os homens estão dois séculos na nossa frente."

A presença feminina em uma chefia acadêmica da Universidade de São Paulo foi registrada pela primeira vez quatro décadas antes de Ferreira ser diretora. Em 1954, Alice Canabrava foi eleita a primeira diretora da Faculdade de Economia e Administração, então chamada Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas.

Caio Esteves/Folha Imagem
Maria Tereza Leme Fleury, diretora da FEA-USP, que tomou posse em agosto
O cargo de Canabrava só foi novamente ocupado por uma mulher neste ano. Maria Tereza Leme Fleury, 54, tomou posse em agosto, vinda do Departamento de Administração, e deve encerrar seu mandato em 2006, com as comemorações dos 60 anos de fundação da escola. "Foi a primeira vez que concorri a uma eleição", afirma. Formada em ciências sociais em plena efervescência estudantil do regime militar, Fleury chegou à administração na época do seu doutorado.

Na USP, as mulheres só se aproximaram do poder com a lista a tríplice, de onde é pinçado o nome do futuro reitor. Miriam Krasilchik, da Faculdade de Educação, concorreu no pleito que elegeu Jacques Marcovitch, em 1997. Atualmente, das 36 unidades de ensino e pesquisa da USP, 8 são dirigidas por mulheres —Enfermagem (no campus de São Paulo e no de Ribeirão Preto), Odontologia (em Bauru e em Ribeirão Preto), Ciências Farmacêuticas e Biociências, Educação, Arquitetura e Economia.

"Há um certo viés machista nos cargos de comando das universidades. Não é um preconceito dos homens, mas uma cultura da sociedade", afirma Maria Helena Guimarães e Castro, secretária-executiva do Ministério da Educação.

Mas a questão do sexo do poder não é explícita, e poucos ousam denominá-la de preconceito. "Não me sinto discriminada, mas certamente existem instrumentos de exclusão por gênero na universidade", diz Ana Lúcia Almeida Gazzola, 52, a segunda mulher a assumir a reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais. A primeira foi Vanessa Guimarães Pinto, entre 1990 e 1994, que veio da Faculdade de Educação.
O "viés machista" fica explícito na análise dos números dos professores universitários. A diferença entre homens e mulheres chega a 15 pontos percentuais do total de docentes das universidades federais, de acordo com o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais). Mas a mesma proporção não se repete quando se trata de diretores de faculdade ou de reitores. As cinco mulheres reitoras representam menos de 10% do universo total. Nas demais instituições, as proporções são semelhantes (veja quadro).

Os títulos acadêmicos são pré-requisitos para a escolha dos diretores e reitores. A exigência curricular varia conforme a instituição. Na USP, é necessário ser aprovado no concurso de professor titular; nas federais, a conclusão do doutorado já permite concorrer ao cargo de diretor.

Formada em história e, havia pouco tempo, em ciências econômicas, Alice Canabrava, 90, chegou ao posto máximo da nova casa principalmente por seus títulos acadêmicos na década de 50. "A Alice foi uma das primeiras professoras titulares a trabalhar na Faculdade de Economia", afirma a professora Diva Benevides Pinho, presidente da Comissão de Memória da FEA-USP. Canabrava —aposentada desde 1981— dirigiu a faculdade em um período considerado turbulento. "Havia muita disputa entre os professores catedráticos", afirma Pinho sobre a gestão da então quinta diretora da FEA.

A turbulência também marcou a gestão da primeira reitora da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Nadir Gouvea Kfouri dirigia a universidade havia um ano quando, em 22 de setembro de 1977, o prédio do bairro de Perdizes foi invadido pela Polícia Militar. Kfouri ganhou reconhecimento por afrontar o coronel Erasmo Dias, então secretário de Segurança Pública, que comandava a invasão.

Naquela data, a polícia dissolveu, com cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, uma manifestação de cerca de mil estudantes em frente à PUC-SP. Os universitários pretendiam festejar a reorganização da UNE (União Nacional dos Estudantes) e criticar a ação policial que havia impedido a realização de um encontro no dia anterior. Acabaram presos.

Arte/Folha Online

Além da posição contrária à invasão, Kfouri ficou conhecida como uma das responsáveis pela constituição democrática que os órgãos colegiados da universidade têm atualmente. Em sua primeira gestão, participou do processo de instituir as eleições diretas na PUC-SP. Em 1980, a universidade tornou-se a pioneira no Brasil a eleger seu reitor pelo voto direto dos alunos, professores e funcionários. E a reitora foi a primeira a ser eleita pelo voto para o cargo, na gestão seguinte. "Dona Nadir ficou conhecida pelo respeito que tinha à comunidade acadêmica", afirma Raquel Raichelis Degenszajn, 54, vice-reitora acadêmica da PUC.

Formada em serviço social, Nadir Kfouri, 89, fez carreira na universidade. Sua gestão durou de de 1976 a 1984. Fundada em 1946, com a união da Faculdade de Filosofia e Letras de São Bento com a Faculdade Paulista de Direito, a PUC-SP registra também o mandato da reitora Leila Bárbara, entre 1988 e 1992, vinda do Departamento de Linguística. Atualmente, o reitor Antonio Carlos Caruso Ronca é auxiliado por três vice-reitoras. "O perfil dos cursos da PUC tem muita participação feminina", acrescenta Degenszajn.

O mesmo não se pode afirmar dos cursos de engenharia. Maria Cândida Reginato Facciotti, 48, a primeira professora titular da masculina Escola Politécnica da USP, chegou ao cargo dois anos atrás, quando a faculdade comemorava 107 anos. "A ausência de mulheres na engenharia ocorre pela natureza do curso, mas há também um certo preconceito", afirma Facciotti, engenheira química da turma de 1976. A média de participação feminina na graduação da engenharia varia de 8% a 10%, calcula.

Depois de se tornar professora titular, ela também assumiu os cargos de vice-chefe do Departamento de Engenharia Química e de presidente da Comissão de Pós-Graduação da Escola Politécnica. "Participo das comissões por acreditar que quem chega num alto posto acadêmico, como cheguei, tem muitas contribuições a dar para a universidade", acredita.

Alexandre Schneider/Folha Imagem
Iracema de Oliveira Moraes, segunda mulher a assumir uma diretoria na Unicamp
Situação semelhante viveu Iracema de Oliveira Moraes, 60, a segunda mulher a assumir uma diretoria na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e a primeira diretora formada pela universidade. A primeira diretora foi a professora Ayda Ignez Arruda, diretora do Instituto de Matemática, Estatística e Ciências da Computação, no início da década de 80.

Moraes, diretora da Faculdade de Engenharia de Alimentos de 1982 a 1986, recorda-se de ter sido questionada, num jantar com pesquisadores norte-americanos, sobre a existência de faculdades femininas de engenharia no Brasil. "Eles estranharam o fato de uma mulher ser diretora de um curso misto de engenharia", conta. Mas, para ela, o estranhamento não tinha sentido. "Desde o início, sempre trabalhei num ambiente masculino", acrescenta a professora, aposentada pela Unicamp e atual coordenadora da área de engenharia química da Universidade Guarulhos. Atualmente, das 20 unidades de ensino da universidade campineira, 2 são dirigidas por mulheres.

O preconceito, velado ou não, pouco atrapalha na gestão e não é motivo de discussão entre elas. Mas as diretoras e reitoras reclamam de questões próprias a seu universo, como a dupla jornada de trabalho —alegam trabalhar pelo menos dez horas por dia. E muitas elogiam a postura compreensiva do marido. Com 56 anos, três filhos e três netos, Maria Helena Guimarães e Castro, do MEC, que trabalha em Brasília e vive em Campinas (SP), decidiu-se pelo curso superior aos 30 anos, quando já havia criado os filhos. Do curso de sociologia na Unicamp, ela logo se tornou professora de ciência política, diretora-adjunta do departamento e, em 1992, secretária municipal de Educação.

No cargo atual, Castro auxilia na nomeação dos reitores das universidades federais. "Se chegar uma mulher como a mais votada, ela é nomeada", afirma. Mas ela diz que, em oito anos de ministério, foram raros esses casos. Quando uma mulher é nomeada, a secretária-executiva já sabe que a instituição terá nos quatro anos seguintes uma dirigente mais batalhadora e detalhista. "Os homens olham mais para o lado macro das universidades, enquanto as mulheres são mais briguentas, no bom sentido, e vão mais insistentemente atrás de seus objetivos", afirma.

     

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