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17/12/2002 - 02h43

As duas faces do romance russo

MANUEL DA COSTA PINTO
especial para a Folha de S.Paulo

Avaliar a obra de um escritor por meio de comparações com outros autores é, na esmagadora maioria das vezes, uma confissão de fracasso de quem não consegue explicar para outros (e para si mesmo) as razões de sua identificação profunda com esta ou aquela obra. Afinal, é perfeitamente possível ler Camões sem citar Petrarca, chorar com Racine e rir com Molière ou recitar Drummond sem excluir João Cabral da estante.

Fotos Reproduação
Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e Liev Tolstói (1828-1910)

Mas a história da literatura oferece alguns exemplos raros de escritores que sempre se apresentam associados ao espectro complementar de um "duplo": é o caso de Voltaire em relação a Rousseau, de Goethe em relação a Schiller, de Balzac em relação a Stendhal e, sobretudo, de Tolstói em relação a Dostoiévski, autor cujas obras vêm sendo sistematicamente editadas no Brasil em traduções feitas diretamente do original russo.

Todos eles giram, com seus respectivos pares, em torno dos mesmos problemas, que são as linhas de força de cada época: a oposição entre racionalismo e natureza no Iluminismo francês, a estetização do sujeito e o panteísmo transcendental do romantismo alemão, a tensão entre a energia individual e a força alienante das relações econômicas no realismo do século 19.

A diferença, quando se fala de Tolstói e Dostoiévski, é que eles são a síntese, o apogeu e, simultaneamente, a dissolução desse processo de constituição (e de representação literária) do que entendemos por sociedade moderna. Praticamente todos os temas presentes nas obras de Rousseau, Schiller ou Stendhal (o "bom selvagem", a aspiração ao sublime, as verdades parciais da vida afetiva) reaparecem de modo concentrado em seus livros. Antes de Tolstói e Dostoiévski, podia-se, sem grandes dificuldades, classificar a literatura segundo categorias como "romance picaresco", "romance social", "romance psicológico" etc. Porém, obras como "Crime e Castigo" (de Dostoiévski) ou "Ana Karênina" (Tolstói) reúnem em suas personagens —e muitas vezes em uma única personagem— todo o mosaico possível de acepções do humano: os abismos interiores de desejo e culpa, os determinismos materiais e a tentativa de transcendê-los social e espiritualmente, as utopias políticas e religiosas, a fronteira tênue entre sanidade e demência, lucidez e possessão.

Aquilo que os une, no entanto, é justamente o que os separa. A percepção do drama humano em sua totalidade fraturada, que se verifica tanto em Tolstói quanto em Dostoiévski —e que faz da literatura anterior uma espécie de pré-história da arte de representar a pluralidade do real—, tem soluções que designam aos dois escritores russos papéis praticamente antagônicos na história da literatura. Tolstói é o remate perfeito da épica burguesa, da arte do romance; Dostoiévski aponta para sua falência e ultrapassamento. Romances monumentais como "Guerra e Paz" e "Os Irmãos Karamázov" são, respectivamente, o panorama e o apocalipse de uma era.

Nesse sentido, Dostoiévski é muito mais contemporâneo dos apocalipses cotidianos de nosso tempo do que Tolstói. É difícil encontrar na literatura universal um sucedâneo da escrita aristocrática do autor de "A Morte de Ivan Ilitch" (o mais forte candidato seria Thomas Mann, não por acaso autor de um ensaio intitulado "Goethe e Tolstói").

Em contrapartida, um livro como "Memórias do Subsolo"—que foi lançado também pela Editora 34, com tradução de Boris Schnaiderman— gerou uma profusão de personagens "subterrâneas" que ruminam sua inadaptação visceral ao mundo em monólogos autodestrutivos, desconstruindo qualquer ilusão de reconciliação do homem com a sociedade e com a natureza. Há referências evidentes a "Memórias do Subsolo" na forma alegórica do conto "A Construção", de Franz Kafka, na personagem da peça "Dias Felizes", de Samuel Beckett (que passa o tempo todo enterrada em um buraco), no diálogo sem interlocutor de "A Queda", de Albert Camus, e no monólogo existencial de "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector —o que por si só dá uma idéia do impacto de Dostoiévski sobre diferentes momentos da literatura do século 20.

Mas "Memórias do Subsolo" teve importância, acima de tudo, no interior da própria produção dostoievskiana, projetando-se sobre seus quatro romances de maturidade: "Crime e Castigo", "O Idiota", "Os Demônios" e "Os Irmãos Karamázov". Cada um desses livros mereceria um artigo à parte, mas a recente publicação de "O Idiota" pela Editora 34 (688 págs., R$ 54; da mesma editora, "Crime e Castigo", 568 págs., R$ 49, "Memórias do Subsolo", 152 págs., R$ 23, "Niétotchka Niezvânova" 224 págs., R$ 25, e "O Crocodilo e Notas de Inverno sobre Impressões de Verão" 168 págs., R$ 23), em tradução do original russo feita por Paulo Bezerra (que também traduziu "Crime e Castigo"), acaba lançando o foco sobre aquela que talvez seja a mais complexa personagem de Dostoiévski: o príncipe Míchkin.

Comparado aos outros três romances citados acima, o enredo de "O Idiota" oscila entre a ingenuidade e a banalidade. "Crime e Castigo" é um romance policial estruturado a partir de uma espécie de "assassinato filosófico" (o herói, Raskólnikov, comete o crime para provar sua superioridade moral); "Os Demônios" é um retrato das disputas ideológicas no seio de um grupo de revolucionários e "Os Irmãos Karamázov" é um drama familiar tecido ao redor do tema mítico do parricídio.

Já "O Idiota" é a história, aparentemente sem grande complexidade narrativa, do retorno do jovem Míchkin à Rússia, após vários anos de internação na Suíça (para tratamento da epilepsia), e de seu envolvimento em um triângulo amoroso no qual os outro dois vértices são Rogójin (um devasso perdulário que dilapida a herança paterna) e Nastácia Filíppovna (uma mulher ao mesmo tempo ultrajada e altiva, além de arrebatadoramente bela).

Mas o que importa no romance, como de resto em qualquer obra de Dostoiévski, é a criação de um cenário ficcional em que tudo conflui para uma esfera que poderíamos chamar de "escatológica" (entendida aqui no sentido da discussão teológica sobre o fim dos tempos e o juízo final). Essa dimensão apocalíptica, religiosa, impregna cada frase ou ação das personagens de "O Idiota". Míchkin é uma espécie de iluminado que cativa ao primeiro olhar com sua simplicidade e parece ver através da alma alheia. Mas sua ingenuidade e pureza quixotescas, que tangem a idiotia, não o impedem de, logo na primeira cena, no trem que o leva de volta à terra natal, conhecer Rogójin e penetrar na trama passional que este e Nastácia vivem, percebendo ali um desejo de expiação e de exercício do "mal" em estado puro que transforma essas figuras sensuais em emanações arquetípicas, em encarnações da essência degradada do homem após a "queda".

A partir daí, o romance se desenrola em uma sucessão de cenas vividas por uma miríade de personagens que constituem uma espécie de afresco da Rússia do século 19: seres mesquinhos e frívolos como Gánia (o pretendente de Nastácia) ou Aglaia (o amor "terreno" e, por isso, inviável do príncipe Míchkin); figuras acanalhadas (como Totski, Liébediev ou Fierdischenko) e moribundos desesperados (como Hippolit, o jovem tísico e jacobino que faz um longo discurso anunciando seu suicídio para uma audiência desinteressada).

São personagens que se digladiam, discursam, gritam, agonizam, defendem idéias com a mesma intensidade com que vivem paixões carnais; vão do reles ao sublime num piscar de olhos. Por trás de cada uma das cenas de escândalo social que se desenrolam ao longo de "O Idiota", o leitor percebe a atmosfera de horror metafísico que aguarda Míchkin, Rogójin e Nastácia no epílogo narrativo. É como se Dostoiévski fizesse de cada bêbado, agiota ou seviciador que desfila diante de nossos olhos uma fresta pela qual vislumbramos uma redenção sempre adiada.

Aliás, esse é um dos traços estilísticos mais marcantes de Dostoiévski: fazer com que as questões metafísicas mais pungentes se imiscuam na vulgaridade das ações ordinárias (conservando assim seu realismo) e, ao mesmo tempo, fazer com que encontros miraculosos e cenas improváveis, dignas dos romances de folhetim, adquiram uma gravidade tal que pareçam ser a consequência lógica de um universo que caminha para a consumação.

Tudo nos romances dostoievskianos está às portas do juízo final. Daí o paroxismo de cada gesto e a extrema compressão espacial e temporal de "O Idiota". A cena da festa na casa de Gánia (em que cada personagem expõe suas piores iniquidades e que termina com Nastácia lançando ao fogo o pacote de dinheiro com o qual Rogójin queria "comprá-la") seria inconcebível em qualquer romance naturalista, nos quais personagens de origens sociais diferentes só convivem em espaços públicos e no qual as separações de classes se fazem sentir o tempo todo.

Em Dostoiévski, porém, um simples cubículo é capaz de comportar nobres, burgueses, funcionários públicos, estudantes e vagabundos que debatem acaloradamente entre si —todos envolvidos em questões metafísicas que pairam acima das determinações materiais e das segregações entre o público e o privado.

Da mesma maneira, toda a ação da primeira parte do livro (cerca de 200 páginas!) se desenrola ao longo de um único dia, arrastando o príncipe por uma quantidade inimaginável de experiências, como se nada pudesse ser postergado, como se cada ação tivesse um caráter de urgência, como se todo movimento guardasse uma promessa só atingida em momentos de intensidade sobre-humana (a exemplo dos ataques de epilepsia de Míchkin).

Essa compressão do espaço e do tempo aponta para um fato desconcertante: o grande escritor realista era no fundo um místico, no sentido bizantino do termo, leitura defendida pelo filósofo Luiz Felipe Pondé em livro que será lançado no início do próximo ano ("Crítica Religiosa a um Humanismo Ridículo: uma Introdução à Filosofia da Religião em Dostoiévski", Editora 34).

Reprodução
Camponeses russos no final do século 19
O que isso significa exatamente? A crítica tradicional muitas vezes interpretou sua conversão ao cristianismo ortodoxo como um fato político: depois de militar no Círculo Petratchévski (grupo de socialistas utópicos) e ser preso por conspirar contra a vida do czar, Dostoiévski foi condenado à morte em 1849, tendo a pena comutada para quatro anos de prisão na Sibéria quando já estava diante do pelotão de fuzilamento (na verdade, a cena toda fora uma perversidade das autoridades, já que a comutação havia sido concedida por Nicolau I antes da data prevista para a execução).

Alquebrado pelos anos de degredo, Dostoiévski teria transferido da política para a religião seu sentimento de revolta, dando conotações messiânicas a sua adesão ao movimento eslavófilo (uma forma de nacionalismo que contrapunha a pureza da alma russa ao desenraizamento provocado pela ocidentalização da Rússia). A religião, todavia, não teria conseguido sufocar seu anarquismo essencial, e a prova disso estaria na parábola do Grande Inquisidor, episódio alegórico (narrado em "Os Irmãos Karamázov") no qual Cristo retorna à terra e é preso pela Igreja Católica espanhola porque sua mensagem de liberdade seria insuportável para o homem. A Igreja Católica, segundo uma interpretação recorrente, seria aqui uma metáfora de todos os poderes temporais, incluindo o czar (que Dostoiévski se furtara de atacar para não se ver novamente enredado em problemas políticos).

Embora consistente, essa leitura deixa num plano meramente instrumental ou ideológico o misticismo de Dostoiévski e, aqui, a intervenção de Pondé é preciosa, pois desvenda no escritor russo uma dimensão "vertical" (ou sobrenatural) sem a qual a crítica da auto-suficiência humanista, contida em um livro como "Memórias do Subsolo", seria incompreensível ou meramente patológica. O anônimo e irascível narrador dessa novela, que do fundo de sua tocaia investe contra "os palácios de cristal", as quimeras construídas pelo "homem de ação", seria simultaneamente um instantâneo do estado de agonia do homem na natureza e uma abertura para as visitações do transcendente.

Essas "visitações" não ocorrem em "Memórias do Subsolo", mas despontam ao fim de "Crime e Castigo" (com a redenção de Raskolnikov) e nas crises de epilepsia do príncipe Míchkin, esses momentos de iluminação mística, de experiência interior de Deus, que se dão justamente a partir da doença e da desagregação da natureza (na qual um cientificismo estreito gostaria de nos encerrar).

O anticlericalismo de Dostoiévski, dentro dessa perspectiva, não seria uma defesa política da Igreja Ortodoxa contra a igreja de Roma, mas a expressão de uma teologia negativa, bizantina, que evita a pretensão dogmática dos escolásticos (que buscam em vão "provar" a existência de Deus) e percebe o sobrenatural a partir de nossa disfunção essencial e da própria incapacidade de descrever ou contemplar um Deus entrevisto pelo homem em seu exílio "vertical".

Essa leitura, longe de destituir o valor propriamente literário de Dostoiévski, ajuda a compreender melhor o caráter antiestetizante e antiliterário de obras como "Memórias do Subsolo", "O Idiota" ou "Crime e Castigo" —cujas asperezas e redundâncias são recuperadas pelas traduções de Boris Schnaiderman e Paulo Bezerra, sepultando as versões feitas a partir do francês (que suavizavam a escrita dostoievskiana).


É conhecido, por exemplo, o repúdio de Tolstói ao estilo "mal-acabado" dos romances de seu "duplo" literário. Também Tolstói tinha uma preocupação com o desenraizamento do povo russo e pregava o retorno à simplicidade da igreja primitiva e aos valores da vida camponesa —uma fuga do mundo tematizada no livro "Padre Sérgio" (publicado pela Cosac & Naify Edições em tradução de Beatriz Morabito, 128 págs., R$ 30; da mesma editora, "O Diabo e Outras Histórias", 284 págs., R$ 35).

Mas, em Tolstói, as crises religiosa, política (sua renúncia aos privilégios de nobre latifundiário) e até mesmo estética (sua rejeição da arte ao final da vida) são expressão das frustrações de uma utopia inspirada em Rousseau (e, portanto, "ocidentalizante"). A crítica ao "homem inútil"—contida em "A Morte de Ivan Ilitch"— deságua no vazio sem consolo do humanista confrontado com a morte e com um mundo que lhe escapa por entre os dedos. Algo bem diferente, portanto, da superação metafísica que se antevê ao final de "Memórias do Subsolo".

Enquanto escreveu, Tolstói jamais conseguiu se libertar de seu próprio talento literário. Em nenhum momento ele consentiu em transgredir as regras da grande arte como forma de superação de suas limitações: quando a arte se demonstrou incapaz de transformar o mundo, abdicou dela. Mesmo "Ana Karênina", que deveria ser uma condenação da vida "mundana", se desdobra em dois enredos paralelos (a história da adúltera Ana Karênina e do camponês aristocrático Liévin) que resultam numa sinfonia perfeita e fazem da protagonista uma figura feminina cuja complexidade consegue suplantar até mesmo a Emma Bovary de Gustave Flaubert.

Comparado a Tolstói, portanto, Dostoiévski é o avesso do artista que lança um olhar olímpico sobre a realidade. Seus livros de enredo caótico e o discurso circular de suas personagens não estão a serviço da representação do existente ou da autonomia do objeto estético, mas de uma outra ordem, mais obscura e transcendente —por isso Joseph Frank deu ao quinto e último volume de sua biografia do escritor russo (que vem sendo editada no Brasil pela Edusp) o título de "Dostoiévski: o Manto do Profeta".

Obviamente, é preciso cautela quando se lê um escritor a partir de um recorte extraliterário. Mas talvez se possa dizer que Dostoiévski foi o profeta de todas as convulsões que marcaram a história da literatura depois sua obra.

Manuel da Costa Pinto, 36,é jornalista, editor da revista "Cult" e autor de "Albert Camus - um Elogio do Ensaio" (Ateliê Editorial). Tentou aprender russo para ler Dostoiévski no original, mas desistiu na terceira aula.

Leia mais:
- Leia prefácio do tradutor de "O Idiota"

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