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28/01/2003
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02h54
Eles ensinam na aldeia e aprendem na universidade
KIYOMORI MORI free-lance para a Folha de S.Paulo
Até o final deste mês, 236 índios do Estado de Roraima disputarão as 60 vagas do mais novo curso da Universidade Federal de Roraima: licenciatura intercultural. O candidato deve ser etnicamente índio (se reconhecer e ser reconhecido como tal) e professor de escola indígena. Para ser aprovado, passa por análise de currículo e entrevista —que pode ser realizada em português ou na sua própria língua. Que tal um vestibular em que a prova de redação pode ser feita em ianomâmi, macuxi ou uai-uai?
Segundo o último Censo Escolar Indígena realizado pelo MEC (Ministério da Educação), há no Brasil pouco mais de 3.000 professores indígenas ministrando aulas para mais de 90 mil crianças, 80% delas no ensino fundamental. Do total de professores, mais da metade ainda é leiga, ou seja, sem formação específica para exercer a profissão.
Divulgação | | Xavantes em aula de desenho no curso para professores da Universidade Estadual de Mato Grosso |
| Desde o final da década de 90, as 1.392 escolas indígenas do país passaram a receber reivindicações dos povos indígenas para que a educação de suas crianças fosse além das primeiras quatro séries do ensino fundamental. "Houve um boom nessa demanda. A escola deixou de ser um elemento estranho à cultura indígena no país e hoje é vista não apenas como meio de fortalecer a própria cultura mas também oportunidade de acesso aos conhecimentos universais", conta Jean Paraíso Alves, coordenador de apoio às escolas indígenas do MEC.
O curso de licenciatura intercultural montado em Roraima dura cinco anos. Foi criado para atender a resolução 3/99 do MEC, que obriga os Estados a oferecer qualificação de nível superior a todos os professores das escolas públicas que lecionam a partir da quinta série. Os professores indígenas estão incluídos. Apenas Distrito Federal, Piauí e Rio Grande do Norte não terão de criar cursos específicos, porque ainda não têm população indígena oficialmente reconhecida. Mas o coordenador do MEC explica que não há um prazo definido para isso: "Cada Estado deverá conduzir a formação de acordo com a realidade local", diz Alves.
"O grande desafio, a prioridade, na verdade, é fazer com que o professor complete sua escolarização básica antes de habilitá-lo para a profissão", afirma Luís Donisete Grupioni, antropólogo e pesquisador do grupo de educação indígena da USP. Grupioni lembra que 28% dos professores indígenas em atividade ainda não completaram o ensino fundamental.
Em São Paulo, por exemplo, a secretaria estadual de Educação iniciou, em julho de 2002, a formação de professores indígenas em um curso de nível médio para 60 alunos-professores das etnias guarani, kaingang, crenaque e terena. Segundo a coordenadora do Núcleo de Educação Indígena, Deusdith Bueno Velloso, foi preciso começar pelo ensino médio devido à baixa escolaridade dos professores: "O próximo passo será implementar, em conjunto com a Faculdade de Educação da USP, o curso de nível superior". O curso de nível médio termina em setembro deste ano.
A licenciatura intercultural difere de um curso "normal" porque forma professores-pesquisadores. "Um professor indígena não dá apenas aulas, mas tem o compromisso de recuperar sua cultura com os membros mais velhos de sua comunidade, sistematizar o que aprendeu e elaborar o material didático que usará em suas aulas, em duas línguas —português e a língua de sua etnia", explica Alves, do MEC.
Para evitar que os professores indígenas se afastem de suas aldeias durante o período escolar (e deixem os estudantes sem aula), o curso de licenciatura intercultural em Roraima será ministrado nos meses de janeiro, fevereiro e julho, época das férias no calendário letivo. Os professores da UFRR acompanharão o desempenho de seus alunos in loco, viajando às aldeias nos demais meses. "O que buscamos é que as escolas localizadas nas aldeias contem com professores indígenas graduados, para garantir ensino de melhor qualidade às crianças, mas sem afastá-los daquele convívio", diz Maria Auxiliadora de Souza Melo, coordenadora do Núcleo Insikiran de Formação Superior Indígena da UFRR.
A primeira instituição brasileira a oferecer curso superior exclusivo para professores indígenas foi a Unemat (Universidade do Estado de Mato Grosso). "Percebemos a necessidade de criar o programa não apenas devido à lei mas porque os índios que queriam ser professores, ou que já eram, estavam abandonando suas aldeias em busca do ensino na capital", afirma Elias Januário, coordenador do Terceiro Grau Indígena daquela universidade. O projeto, iniciado em julho de 2001, usou como referência os programas em funcionamento na Guatemala, na Nicarágua, no Equador e no Canadá.
O curso da universidade mato-grossense, que também dura cinco anos, vai formar professores em três áreas: ciência da matemática e da natureza, ciências sociais e línguas (artes e literatura, incluindo o idioma da etnia). É custeado pelo governo do Estado e pela Funai e oferece alojamento e refeições aos professores-alunos.O conteúdo das aulas é adaptado para o cotidiano dos índios, ou seja, nada de girafa, zebra ou elefante na hora de ensinar biologia.
Dos 200 alunos que se inscreveram e iniciaram na Unemat, 180 são oriundos de 36 etnias. As demais vagas são abertas a índios de outros Estados. Nessa primeira turma, há dois pataxós da Bahia, dois kaingangs do Rio Grande do Sul e um kaingang de Santa Catarina . Até hoje, apenas um aluno desistiu. O projeto mescla quase 40 culturas e histórias diferentes em uma mesma sala de aula. "Os pataxós (da Bahia) já convivem com o branco há mais de 400 anos, os xavantes têm apenas cerca de 50 anos de contato. Isso tudo causou uma estranheza de convívio, mas tudo foi muito bem superado", afirma Januário. A experiência de Mato Grosso servirá de modelo para a criação de escolas indígenas no Amazonas, em Minas Gerais e no Espírito Santo.
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