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28/01/2003 - 02h49

Leia introdução de "História da Humanidade"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo a introdução do livro "A História da Humanidade", de Steve Olson (Campus, 312 págs., R$ 59), citado na seção "Leituras Cruzadas".

INTRODUÇÃO - O Desfile da Humanidade

QUALQUER UM que passeie nas calçadas de uma grande cidade não pode deixar de se admirar com a incrível variedade de seres humanos - altos e baixos, gordos e magros, peludos e glabros. A pele de alguns é branca como o leite; a de outros, escura como chocolate. A forma do rosto das pessoas, a cor do cabelo e dos olhos, o contorno dos olhos, do nariz e da boca são maravilhosamente únicos. Até certo ponto, temos consciência destas diferenças porque as usamos para identificar as pessoas que conhecemos. Entretanto, esta diversidade não é ilusória; os seres humanos são realmente uma das espécies mais variadas que existem em nosso planeta.

As pessoas tendem a usar estas diferenças de aparência para tirar conclusões a respeito da origem dos indivíduos. Na América e na Europa, se você tem pele escura, as pessoas logo imaginam que seus antepassados eram africanos, embora também existam populações de pele escura no sul da Índia, na Austrália e no sudeste da Ásia. Os indivíduos com uma prega cutânea nos olhos são considerados de origem asiática, embora nem todos os asiáticos tenham um epicanto, como é chamada esta prega, e ela esteja presente em populações africanas e americanas. Um nariz proeminente, olhos profundos e pele clara identificam uma pessoa como de descendência européia, embora populações com traços semelhantes, embora com pele ligeiramente mais escura, tenham vivido durante milhares de anos na Índia, na Polinésia, no norte do Japão e na América.

Historicamente, esta tendência para dividir as pessoas em categorias tem sido causa de grande sofrimento. Grupos inteiros foram condenados à morte ou à escravidão por causa da cor da pele ou da forma dos olhos. Mesmo hoje em dia, quase todos os conflitos armados ocorrem, não entre nações, mas entre grupos separados por diferenças que muitas vezes são interpretadas em termos biológicos. Em lugares como Ruanda, os Bálcãs, a Indonésia e o Oriente Médio - para citar apenas os exemplos mais recentes - grupos de pessoas lutaram e se mataram com selvageria quase tribal.

Em outros lugares, a tensão entre grupos com aparências diferentes espreita logo abaixo da superfície da vida cotidiana. Nos Estados Unidos, mais de três quartos dos americanos de origem africana e de origem européia consideram as relações entre os dois grupos apenas razoáveis ou inadequadas. Em outras partes do mundo, disputas a respeito da imigração e da assimilação de minorias deram origem a sangrentos conflitos de rua e a protestos públicos. Em 1900, o intelectual afro-americano W.E.B. Du Bois declarou: "O problema do século XX é o problema da cor". No alvorecer de um novo século, a questão da raça não diminuiu de importância.

Grupos de pessoas possuem diferentes aparências porque os ancestrais tiveram diferentes histórias biológicas. Quão diferentes, porém, foram estas histórias? Quais das características dos grupos humanos não passam de acidentes históricos, de piadas biológicas, não mais importantes que máscaras em um baile a fantasia?

A história que vou contar começa na África, em algum lugar das savanas e florestas da região que hoje pertence à Etiópia, ao Quênia e à Tanzânia. Há mais de 100.000 anos, um pequeno grupo de seres humanos vivia naquela área. Eles se alimentavam de frutas e sementes. Caçavam gazelas e coelhos e não desprezavam as carcaças de animais deixadas por outros predadores. Eram muito parecidos com os homens de hoje: tinham a testa larga, o queixo pontudo e corpos esguios e graciosos.

Muitos outros humanos viviam em outras partes da África, Europa e Ásia na mesma ocasião, mas eram bem diferentes de nós. A testa era inclinada para trás e possuíam uma saliência óssea acima dos olhos. Estes seres não seriam aprovados no que os antropólogos chamam de teste do metrô: mesmo de barba feita e vestidos com roupas modernas, jamais conseguiriam passar despercebidos em uma viagem de metrô. Os outros passageiros certamente olhariam para eles, curiosos, e pensariam consigo mesmos: "Que tipo estranho!"

Estes assim chamados humanos arcaicos eram muito mais numerosos que os homens anatomicamente modernos que habitavam o leste da África. Mais de 1 milhão de humanos arcaicos podem ter populado o Velho Mundo, enquanto a população de humanos modernos talvez não tenha chegado a algumas dezenas de milhares em certas épocas.

Hoje em dia, os humanos arcaicos estão extintos; o último sobrevivente se foi há milhares de anos. Embora tenham habitado a terra durante centenas de milhares de anos, não deixaram descendentes.

Cada um dos 6 bilhões de pessoas que vivem atualmente em nosso planeta descende do pequeno grupo de humanos anatomicamente modernos que habitou o leste da África no passado remoto. Este grupo esteve próximo da extinção em algumas ocasiões, mas jamais chegou a desaparecer totalmente e finalmente começou a se expandir. Há cerca de 100.000 anos, os humanos modernos tinham se espalhado para o norte ao longo do vale do Nilo e atravessado a península do Sinai para chegar ao Oriente Médio. Há mais de 60.000 anos, ocuparam o litoral da Índia e do sudeste asiático e navegaram até a Austrália. Há 40.000 anos, os humanos modernos chegaram à Europa e ao Extremo Oriente. Finalmente, há pouco mais de 10.000 anos, atravessaram uma planície que ligava a Sibéria ao Alasca e se espalharam pela América do Norte e do Sul.

Em todas as ocasiões em que os humanos modernos encontraram os humanos arcaicos, na África, na Ásia e na Europa, estes últimos acabaram por desaparecer. Muitas dúvidas envolvem estes encontros. De acordo com as informações disponíveis, os dois grupos praticamente não se miscigenaram. Esta conclusão parece estar totalmente em desacordo com nossos conhecimentos da história humana, que mostra que grupos diferentes de seres humanos demonstram uma forte tendência para se misturar. Talvez os humanos modernos e arcaicos fossem geneticamente tão diferentes que não eram capazes de produzir híbridos viáveis. Ou talvez tivessem filhos, mas os mestiços não fossem aceitos nos grupos de homens modernos, de modo que as características físicas dos humanos arcaicos não foram incorporadas às populações modernas; simplesmente não sabemos.

A forma como os humanos modernos substituíram os predecessores também é um mistério. As pesquisas arqueológicas mostram que em alguns casos bandos de humanos modernos e arcaicos viveram na mesma região durante milhares de anos, mas não foi encontrado nenhum sinal de que tenham entrado em conflito. As pinturas nas cavernas da Europa, algumas da mesma época em que o arcaico homem de Neandertal estava desaparecendo do continente, mostram muita violência contra outros animais, mas nenhuma contra seres humanos.

Até alguns anos atrás, não se conhecia boa parte do que escrevi nos últimos parágrafos. Naquela época, a única forma de descobrir alguma coisa a respeito de nossos ancestrais era examinar os ossos e ferramentas de pedra que eles deixaram para trás. Estes restos são irritantemente escassos: dos bilhões de humanos modernos que viveram antes da invenção da agricultura, os cientistas encontraram restos fossilizados de talvez algumas centenas de indivíduos. Isto significa que cada fragmento de osso e pedra lascada pode ser objeto de intermináveis especulações.

Entretanto, ossos e pedras não são o único registro de nosso passado. Cada um de nós é portador de outro tipo de registro em quase todas as células de nosso corpo. O DNA, a longa e complexa molécula que transmite as informações genéticas de uma geração para outra, contém um registro indelével da história humana. Nosso DNA revela a evolução de um macaco africano que começou a caminhar em duas pernas há mais de 4 milhões de anos. Documenta o aparecimento dos humanos modernos nas planícies do leste da África há 7.500 gerações. Registra a diversificação do homem moderno nas "raças" e "grupos étnicos" que conhecemos hoje.

Os geneticistas estão apenas começando a ler a história escrita em nosso DNA, mas já encontraram uma saga de imensa grandeza. Hoje podem acompanhar a disseminação dos humanos modernos da África para o resto do mundo. Estão começando a descobrir quando e como os diferentes grupos de seres humanos adquiriram características particulares e o que significam estas características. Estão aprendendo de que forma os grupos se misturaram e divergiram com o passar do tempo. Estão descobrindo o imenso hiato que separa o que realmente ocorreu no passado das histórias que são contadas a respeito deste passado.

Este é um livro sobre história, mas uma história que está presente de forma palpável em nossa vida cotidiana. Muitos de nós se consideram hispânicos ou chineses, brancos ou pretos, nigerianos ou noruegueses, ou alguma combinação de categorias. Para algumas pessoas, estes rótulos significam muito pouco, enquanto para outras constituem o aspecto mais importante de sua identidade. Entretanto, qualquer que seja a importância que os indivíduos atribuem a estes rótulos, é inegável que exercem uma influência considerável nas sociedades modernas. Muitas pessoas continuam a pensar que os grupos humanos apresentam diferenças biológicas consideráveis. Acreditam que variações externas na cor da pele, nas feições e na forma do corpo refletem diferenças muito mais profundas de caráter, temperamento ou inteligência. Mesmo nos casos em que dois grupos são fisicamente indistinguíveis, as pessoas tendem a considerar a genética como causa principal das diferenças entre grupos. Asseguram que a agressividade, religiosidade ou criatividade de um grupo não pode ser aprendida - deve ser algo que vem com os genes.

A pesquisa genética está revelando exatamente o oposto. Os grupos humanos são geneticamente próximos demais para diferir em algo mais do que detalhes irrelevantes. O estudo genético de nosso passado está mostrando que as diferenças culturais entre grupos não podem ter origem biológica. Estas diferenças se devem na realidade às experiências dos indivíduos.

Boa parte destes novos conhecimentos a respeito de nosso passado provém de uma fonte inesperada. A pesquisa das causas genéticas das doenças está revelando simultaneamente as histórias de grupos e de indivíduos. Os pesquisadores biomédicos hoje se dão conta da necessidade de conhecer as diferenças genéticas entre os indivíduos para compreender porque algumas pessoas adoecem e outras permanecem com boa saúde. Entretanto, estas diferenças genéticas são uma conseqüência da história humana - das uniões de certos homens com certas mulheres durante milhares de anos. Estudando estas diferenças, os pesquisadores estão reconstituindo a história de nossa espécie.

Comecei a me interessar por esta história em 1987, quando os estudos das variações genéticas dos seres humanos revelaram que todos os habitantes da terra descendem de uma única mulher que viveu na África há aproximadamente 150.000 anos. Nos anos que se seguiram, trabalhei em vários projetos, principalmente na Academia Nacional de Ciências, que usavam comparações do DNA para acompanhar a evolução da espécie, por exemplo, ou para compreender a origem de uma doença. Pouco a pouco, comecei a perceber que o DNA humano é um repositório virtualmente ilimitado não só de informações biomédicas mas também de informações históricas, uma espécie de pergaminho molecular no qual está registrado o passado da nossa espécie. Comecei a compilar artigos e livros a respeito do assunto e minhas pilhas de documentos cresceram.

A história contida em nosso DNA é rica, complexa e multifacetada. Neste livro, vou falar de cinco regiões do mundo - a África, o Oriente Médio, a Ásia e a Austrália, a Europa e a América - além de um capítulo final a respeito do Havaí. Em cada parte do livro, tentarei reconstituir a história do homem moderno naquela região do mundo, desde o aparecimento até o momento atual. Às vezes, a história tomará rumos inesperados - como a origem e a diversificação da linguagem, por exemplo, ou as experiências de certos grupos, como os judeus e os chineses han. Entretanto, minha preocupação principal será sempre a mesma: examinar o que nossa história genética tem a dizer a respeito de nós mesmos e nosso passado, presente e futuro como espécie.

O estudo das diferenças genéticas entre os seres humanos constitui uma das áreas mais controvertidas da ciência moderna; para algumas pessoas, tais investigações são perigosas demais para serem toleradas. Na opinião dessas pessoas, a pesquisa genética é uma moderna caixa de Pandora, que ameaça reforçar estereótipos e limitar o potencial dos seres humanos.

Vejo as coisas de outra forma. Estamos a ponto de eliminar pragas que assolaram a humanidade durante toda a sua existência: a fome, as enfermidades, as doenças mentais. É verdade que nossos novos conhecimentos implicam em grandes riscos. Em breve poderemos conhecer a susceptibilidade individual às doenças, o que poderia mudar radicalmente o modo como encaramos nossas vidas e nossas relações com outros seres humanos. Conheceremos muito mais a respeito de nossa história neste planeta, como indivíduos e como membros de um grupo. Temos que descobrir formas de interpretar, manipular e proteger estas preciosas informações.

Entretanto, não somos uma espécie que se acovarda diante do conhecimento. Pelo contrário; há milhares de anos os seres humanos vêm buscando novas formas de fazer as coisas e organizar a suas vidas. A pesquisa genética nos proporciona a oportunidade de poupar muitos sofrimentos aos nossos semelhantes; voltar as costas a tal oportunidade seria ir contra nossa própria natureza.

Muitas das aplicações da genética na medicina ainda pertencem ao futuro; temos tempo para pensar nos dilemas que estas aplicações irão suscitar. Entretanto, os dados necessários para constituir a história genética da humanidade já estão disponíveis; precisamos apenas descobrir o que significam. Se a freqüência de um certo traço genético é alta em um grupo e baixa em outro, isto significa que os dois grupos são fundamentalmente diferentes? Até que ponto os asiáticos, espanhóis, polinésios, índios e outros grupos podem ser definidos geneticamente? A genética pode ser usada para determinar a que grupo pertence um indivíduo?

Não precisamos temer perguntas deste tipo. Pelo contrário: uma vez estabelecidas as salvaguardas apropriadas, as informações genéticas podem ser tornar uma força libertadora. No passado, não compreendíamos por que diferentes grupos de pessoas tinham diferentes aparências. Os preconceituosos podiam associar a estas diferenças as características que lhes aprouvessem. A pesquisa genética está a ponto de pôr fim à lamentável distorção que é a idéia de raça. Hoje sabemos que os grupos se superpõem geneticamente a tal ponto que a humanidade não pode ser dividida em categorias bem definidas. Sabemos que o comportamento humano é tremendamente maleável sob a influência de diferentes contextos sociais. A história escrita em nosso DNA é uma história de libertação e não de opressão.

Além disso, é uma das histórias mais bonitas que já foram contadas. Está repleta de aventura, conflito, triunfo e sexo - muito sexo. Estende-se das florestas aos desertos e às planícies geladas e cobre um período de um número incontável de gerações e milhares de anos. É a nossa história, de nossa origem humilde nas savanas da África a uma posição de controle sem precedentes sobre nosso próprio futuro.

Leia mais:
- Raças, genes e homens
- Leia prefácio do livro "Quem Somos?"

     

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