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25/02/2003 - 03h34

Leia trechos de "Carnaval - Seis Milênios de História"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo trechos do livro "A História do Carnaval" (Gryphus, 597 págs., R$ 61), de Hiram Araújo. Nesta página você encontra o prefácio (escrito por Ricardo Cravo Albin) e a introdução do livro. Para mais trechos, visite a seção História do Carnaval no site da Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro).

PREFÁCIO

Nunca me esqueço duma observação que ouvi do poeta Paulo Mendes Campos, ao nos encontrarmos depois do desfile das escolas de samba num pé-sujo da cidade para uma média com pão a guisa de café da manhã. O sol já ia alto na segunda-feira tórrida de verão carioca—naquele tempo, década de 70, o desfile era só no domingo de carnaval—e ainda havia mais três escolas para passar na Av. Presidente Vargas. O poeta, já meio bêbado de tomar cerveja a noite inteira, saiu-se com a seguinte frase: "—Meu amigo, mas que coisa hein? Esse tempo todo aqui e ninguém desgruda o olho, e ainda por cima essa responsabilidade de ver / julgar / comentar, isso tudo é coisa muito mais séria que qualquer tese acadêmica." E concluiu: "Ainda vou ver toda essa loucura ser discutida nas universidades e se transformar em muitos livros sisudos e chatos."

Acode-me a lembrança do meu amigo poeta porque Paulo M. Campos infelizmente não chegou a ver o que ele previa: as teses acadêmicas que hoje se fazem sobre as escolas no Brasil e no exterior. Nem o ponto culminante que atingiu o desfile das escolas de samba, hoje o grupo especial, que desfila não mais na noite única de domingo, mas também na segunda-feira.

Quanto à segunda parte da previsão do poeta, este livro de Hiram Araújo é um trabalho de nível acadêmico, sim, só que não é tão sisudo assim e absolutamente nada pesadão, nem enfadonho.

Conheço Hiram há muitas décadas—desde o falecido Conselho Superior das Escolas de Samba, promovido pela então onipresente Associação das Escolas de Samba. Dele me aproximei há alguns anos atrás para representarmos, em dupla, o carnaval brasileiro junto aos vários organismos internacionais que tratam do carnaval mundial, especialmente a Fundação FECC (Foundation Europe for Carnivalcities—com sede em Amsterdã) e a UCA (União dos Carnavais da América—com sede em Curaçau).

Hiram Araújo- estudioso, pesquisador e, acima de tudo, apaixonado pelo carnaval—sempre me surpreendeu pelo afinco e fidelidade ao estudo da matéria. Dentre todos nós, apaixonados pela arte que brota espontaneamente do povo, Hiram é o mais dedicado. E digo isso porque sou testemunha de suas pesquisas como rato de livraria, sempre a farejar tudo que se escreva sobre o assunto, desde simples testemunhos pessoais a teses cabeludas sobre estética e sociologia de Peter Burke, Michel Mafesolli ou Mikhail Bakhtin.

Por isso tudo, não poderia mesmo esperar outra coisa—e disso também dou testemunho—senão o respeito e até a reverência com que o tratam nos foros internacionais a que comparecemos anualmente. Hiram Araújo—para meu, ou melhor, nosso orgulho, é considerado uma autoridade mundial no assunto carnaval, tanto pelas pesquisas enveredadas sobre as ancestralidades da festa quanto pelas conclusões e originalidade de seus estudos sobre, especificamente, o carnaval do Brasil.
Este livro que o leitor tem agora em mãos comprova, por A mais B, tudo o que estou a me referir.

Em "Carnaval" é traçado o mais extenso painel sobre a história do carnaval, desde a antigüidade aos tempos contemporâneos. O autor, aliás, elege quatro centros de excelência do carnaval que se fixaram ao longo da história da humanidade em quatro épocas distintas: a primeira no antigo Egito de 4.000 A.C.; a segunda na Grécia e Roma clássicas através dos deuses Saturno, Dionísio e Bacco, celebrando-se pela primeira vez os instintos, o sexo e a bebida; a terceira na Veneza renascentista em que se agregaram os componentes estéticos (fantasias e alegorias) e, finalmente, a quarta e última no Rio de Janeiro do século XX.

O livro não fica por aí, contudo, e avança informações de grande interesse histórico, sociológico e até antropológico. Hiram garimpa pepitas preciosas como, por exemplo, a complicada fórmula criada pelo Papa Gregório I para estabelecer o dia dos festejos do carnaval, sem que eles não comprometessem o recolhimento da Quaresma nem perturbassem a sacralidade da Semana Santa. A sofisticada equação passa, inclusive, pela chegada da primavera e se dá ao luxo de ir até aos ciclos da lua.

Quanto ao carnaval do Brasil, Hiram Araújo mergulha no século passado para citar os primeiros bailes, a partir de 1840 e o tímido início das grandes sociedades em 1855. A contribuição negra e mestiça, especialmente a partir da Abolição de Escravatura, seria decisiva para o carnaval carioca com os ranchos, os cordões e os blocos que, afinal, dariam às ruas tanto a solidez das multidões quanto a sedução sem paralelos do ritmo e da dança gingada.

A partir das escolas de samba, criar-se-ia no Brasil deste final de século o maior espetáculo visual do mundo, com características absolutamente sem paralelos.

A meu ver, a originalidade dos pilares de sustentações que provocam e produzem o desfile das escolas de samba do Rio ainda está a merecer estudos acadêmicos mais aprofundados. Hiram, contudo, enuncia e faz entrever as bases para trabalhos futuros que, com toda certeza, estarão por vir.

Afinal, médico obstetra de profissão que é, Hiram Araújo transformou-se, pela seriedade de suas pesquisas dentro da arte do povo, num orientador de teses acadêmicas que informa os cientistas sociais de agora, com competência, sensibilidade e precisão. Hoje, felizmente, esses intelectuais estão cada vez mais libertos do preconceito cultural de que sempre foram vítimas as manifestações populares, em suas estratégias organizacionais, consideradas por certos narizes retorcidos e pretensiosos como chinfrins e destituídas de valor.

Para encerrar, e exatamente ficando neste último ponto, quero citar aqui a opinião de dois sociólogos da Sorbonne, que ciceroniei num dos desfiles dos anos 80.

Depois de assistirem extasiados ao desfile, eles me fizeram a seguinte observação: —Um povo que consegue este milagre de organização que é o desfile de cada uma das escolas, sem quaisquer elementos de coercitivos de punibilidade, é um povo que sinaliza uma revolução organizacional. A primeira da história da humanidade estribada no prazer do canto e da dança. Ou seja, um povo que assim é capaz de se organizar, será um povo a dar uma contribuição essencial para a paz mundial no próximo milênio.

Que assim seja, Amém!

Ricardo Cravo Albin



INTRODUÇÃO

As maiores dificuldades que os pesquisadores encontram ao estudar o carnaval são a carência de livros especializados e a quase inexistência de documentos e registros escritos. Em conseqüência, o carnaval se recente de um estudo mais profundo.

Sobre a questão, o professor Dr. Lamartine P. da Costa opina: "a interpretação do Carnaval pelos intelectuais, tem sido negligenciada de modo exagerado. Distanciamento e preconceito explicariam, em princípio, a escassez de produção científica e até mesmo da crônica jornalística. Mas, possivelmente, este desinteresse e rejeição vinculam-se às origens religiosas e folclóricas dos festejos carnavalescos que habitualmente constrangem o senso critico das elites pensantes em muitos países. Se de um lado temos uma celebração cristã e popular, que por vezes intimida interferências intelectualistas, de outra parte temos uma manifestação, freqüentemente tida como kitsh, cuja a problematização é desgastante e, portanto, evitada. A recente tendência de se observar a cultura moderna como pós moderna, contudo deve amenizar ou reverter o sentido de minoridade atribuído ao carnaval pela intelligentezia. Tal previsão inclui necessariamente o Brasil, país de cultura carnavalizada embora pouco investigado neste particular por seus cientistas sociais".

Memória do Carnaval coloca à disposição dos estudiosos e pesquisadores um vasto material de pesquisa, amparado por transcrições de textos selecionados em obras de consagrados autores. Algumas opiniões expressas por nós no livro são frutos de uma convivência de mais de 30 anos com o carnaval carioca.

Olhamos o carnaval com uma visão abrangente apoiados nos conceitos de Bakhtin que diz: "o carnaval mais do que uma simples festa é uma visão do mundo onde todas as normas são questionadas, daí tudo o que é marginalizado socialmente busca uma libertação catártica, vencendo simbolicamente a hierarquia, a ordem, a opressão, e o sagrado. Em suma, caindo-se as barreiras, gera-se uma comunicação livre e polifônica, entre pessoas e grupos, todos contagiados pela alegria pelo riso e pela ênfase ao grotesco"

Mas também olhamos o carnaval dentro das perspectivas de Sir James Frazer que, ao discuti-lo em Golden Bough (o ramo de ouro) interpreta-o como um ritual para fazer crescer a lavoura. A fertilidade esteve sempre presente na história do carnaval.

É importante não nos esquecermos que o carnaval é um ritual fundamentalmente cristão.

Em vez de seguir, simplesmente, uma ordem cronológica para contar a história do carnaval identificamos Centros de Excelência, com núcleos de ponta como responsáveis pela criação e irradiação dos modelos da festa. Cada Centros de Excelências do Carnaval (CEC), age como verdadeira usina de forças centrípetas absorvendo as culturas dos povos e de forças centrífugas irradiando os modelos de carnaval para o mundo. Estas visões são simples metáforas para uma compreensão geral do tema, porem não constituem explanações históricas. Os padrões de carnaval irradiados sofrem adaptações nas cidades em que os carnavais ocorrem.

Assim, balizados pelo Centro de Excelência do Carnaval, dividimos a história do carnaval em quatro períodos: o Originário, (4.000 anos a.C. ao século VII a.C.), o Pagão, (do século VII a.C. ao século VI d.C.), o Cristão ( do século VI d.C. ao século XVIII d.C.) e o Contemporâneo (do século XVIII d.C. ao século XX).

Esta divisão é puramente esquemática, no sentido de perspectivas históricas e não de investigação sistemática. Também esclarecemos, que usamos a delimitação de tempo em bases aproximadas aos paradigmas que permitiram as mudanças de características do carnaval. Mas não fazemos relações entre tais singularidades.

Hiram Araújo

Leia mais
  • Leituras Cruzadas: Produção cultural atravessa o samba
  • Leia capítulo do livro "Sambeabá"
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