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25/02/2003 - 03h32

Leia introdução de "Blocos"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo trecho da introdução do livro "Blocos - Uma História Informal do Carnaval de Rua" (Relume Dumará, R$ 23), de João Pimentel.

Um abre-alas

Contar a história dos blocos de rua do Rio de Janeiro, apesar do espírito festeiro que envolve as turbas que tomam conta da cidade durante a festa de Momo, é lembrar também da origem pagã do carnaval, que, para alguns, nasceu nas festas dedicadas à deusa Íris e ao Boi Ápis, no antigo Egito, e para outros nas danças em homenagem ao deus Pa, as chamadas lupercais, e a Baco (ou Dioniso para os gregos), nos rituais conhecidos como dionisíacos ou bacanais. Havia também as saturnais, festejadas de 17 a 19 de dezembro, uma espécie de orgia gastronômica marcada por mesas fartas nas portas das casas. Sempre discriminado pela Igreja Católica, o carnaval acabou, por fim, sendo assimilado por ela desde os primeiros tempos do cristianismo, quando chegava a durar quarenta dias, no período de 7 de janeiro à terça-feira gorda. Haja disposição!

Marcado pelo abuso, o carnaval, no início da Era Cristã, passou a ser orientado e tolerado pela Igreja. Por sinal, muitos acreditam que foi nesse período que a festa passou a integrar o calendário religioso. Este pensamento tem sua lógica centrada no fato de o carnaval preceder a Quaresma. Ou seja, uma festa de hábito pagão que tem seu fim numa quarta-feira de cinzas, dia de penitência e dor.

É de conhecimento geral que o carnaval, durante anos, foi condenado por papas e reis católicos que não aceitavam as brincadeiras que sempre fizeram parte da festa. Mesmo sendo aceito ou assimilado, como preferirmos, o fato é que o carnaval cresceu à sombra da Igreja. Em princípio se iniciava no dia 25 de dezembro, misturando-se com as festividades de Natal, de ano novo e de Reis.

Podemos dizer que, apesar de ir contra preceitos eclesiais, a força da folia fez com que a Igreja sempre fizesse vista grossa. Não por acaso o papa Paulo II, no século XV, permitiu que se realizassem comemorações na Via Lata, principal via de Roma, para que ele mesmo pudesse assistir às corridas de cavalos, de velas, de corcundas e lançamentos de ovos, principais atrativos dos romanos daqueles tempos.

Na Idade Moderna os festejos foram reduzidos para menos de dez dias antes da quarta-feira de cinzas. Na capital italiana, até mesmo Paulo IV, aquele da Contra-Reforma, sentava-se à mesa, na data, para um jantar de congraçamento com o Sacro Colégio.

Os bailes de máscaras, que ganharam força nos séculos XV e XVI por influência da commedia dell'arte, foram introduzidos também no período de Paulo II. Eram sucesso na corte de Carlos VI, rei assassinado, em uma dessas festas, fantasiado de urso. As máscaras também eram confeccionadas para a Epifania, o Dia de Reis. As mesmas máscaras, na Veneza e na Florença do século XVIII, tornaram-se instrumentos de sedução das damas.

O carnaval europeu, que entraria em declínio nos primeiros anos do século XX - período em que ganhava força em terras tupiniquins -, atravessou a Revolução Francesa, estando em voga no período literário do romantismo, entre 1830 e 1850. Como lembra Eneida em seu História do carnaval carioca, o escritor Morales de los Rios escreveu em 1901, em O País, que "Byron dava as suas preferências ao carnaval de Veneza enquanto Goethe cantou o carnaval de Roma". Disse ele ainda: "O carnaval fluminense parece ser hoje o que resume todos os outros, e talvez Byron e Goethe, se pudessem conhecer, ficariam de acordo com suas preferências."

O carnaval de rua carioca, em suas diversas manifestações, certamente carrega em si uma carga de valores históricos que remetem a muitos desses episódios e celebrações. Das fantasias e máscaras até os personagens da commedia dell'arte, Colombina, Arlequim e Pierrô, boa parte da irreverência que se vê nas ruas de hoje nos leva ao passado e a outras plagas. Mas a história que se pretende contar aqui não é a de nossos antepassados e nem a das maneiras que eles encontraram de festejar a vida ou reverenciar seus deuses, mas sim a de como essa festa chegou ao Rio de Janeiro e de como, desde os entrudes, as grandes sociedades e os cordões, o carioca descobriu nas ruas o palco ideal para extravasar seus sentimentos.

Nada na história do carnaval é por acaso. As próprias escolas de samba, cada vez mais distantes do espírito e do público cariocas, são um grande apanhado de elementos de outras manifestações. Estão ali as máscaras e fantasias de procedência européia; os cortejos carnavalescos herdados das grandes sociedades; e o bumbo do Zé Pereira que marcava o ritmo da folia em meados do século XIX, precursor da cuíca, do tamborim, do reco-reco que anos depois acompanhariam os blocos de sujos. Mas as grandes influências das escolas certamente foram os ranchos, os cordões e os blocos. Dos ranchos ficaram as figuras do mestre-sala e da porta-bandeira; dos cordões, a presença do estandarte, símbolo de uma agremiação, e o apito que comandava o desfile; e dos blocos, o grande caráter popular e o espírito familiar e comunitário que sempre permeou o carnaval.

"O carnaval é antropofágico. A escola mamou as grandes sociedades, os ranchos e, mais recentemente, tem mamado até as marchas de carnaval", diz o jornalista Sérgio Cabral, criticando os sambas cada vez mais marcheados em função da determinação de um tempo de desfile, fruto das transmissões televisivas.

Não por acaso as grandes escolas surgiram de fusões de pequenos blocos, e até mesmo a decantada primeira escola de samba, Deixa Falar, formada em 1928, era, na realidade, um bloco em que os "professores do samba" desfilavam.

Leia mais
  • Leituras Cruzadas: Produção cultural atravessa o samba
  • Leia capítulo do livro "Sambeabá"
  • Leia trechos de "Carnaval
  • Seis Milênios de História"

         

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