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25/03/2003 - 03h08

À moda da escola

LAURA KNAPP
free-lance para a Folha de S.Paulo

Pedro Azevedo/Folha Imagem
Na cozinha do restaurante, o diploma do chef pende ao lado da réstia de alho. No ateliê de costura, o certificado de curso do estilista repousa, com estudada displicência, sobre um croqui. A julgar pela tendência de associar criatividade e conhecimento formal os dois cenários imaginados serão comuns num futuro não muito remoto.

A profissionalização de setores em que imperava a intuição coincide com o maior interesse que têm despertado a moda e a gastronomia no Brasil. Marcas como Herchcovitch, Fause Haten e Mercado Mundo Mix já estão sob os holofotes internacionais. Quanto à culinária, poderá logo obter algum espaço no mesmo palco, considerando-se a grande procura pelos cursos superiores no setor.

São Paulo concentra a maior parte das iniciativas de ensino de moda e gastronomia, mas os esforços não se restringem à capital econômica do país. Em relação à moda, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior se associou ao Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e ao IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) e, desde o ano passado, oferece cursos de design em diversos pólos de confecção, de Maringá (PR) a Fortaleza (CE).

O sucesso de estilistas brasileiros aumentou a procura por cursos superiores de moda. Na pioneira Faculdade Santa Marcelina, na qual o curso existe há 15 anos, há uma média de quatro candidatos por vaga. Raquel Valente, coordenadora dos cursos de graduação e pós-graduação em moda, lista entre ex-alunos figuras como os estilistas Alexandre Herchcovitch, Vinicius Campion (de A Mulher do Padre), Erica Ikezili (que tem loja própria na galeria Ouro Fino, em São Paulo), e Icarius de Menezes, que vem fazendo sucesso na Europa, ultimamente em Milão.

Pedro Azevedo/Folha Imagem
Raquel Valente, coordenadora do curso de moda da Faculdade Santa Marcelina

A graduação na Santa Marcelina, que hoje tem 500 alunos, dura quatro anos (mais 160 horas de estágio). No curso de pós-graduação, de um ano e meio, os alunos aprendem a gerenciar uma marca, a criar identidade própria, a ser diretor de criação ou a administrar uma confecção.

Atraídos pelo glamour das passarelas, falta a muitos candidatos conhecimento sobre a profissão. O leque de atuação vai da produção de moda para revistas e do vitrinismo ao marketing para tecelagens, confecções e varejo, passando por modelagem, design e criação de conceito. Os detalhes são importantes. "O tamanho da roupa tem um impacto muito grande no planejamento de uma coleção", exemplifica Sergio Garrido, coordenador dos cursos de moda da Universidade Anhembi Morumbi.

A mudança no perfil do mercado não se deu por acaso. Ao contrário, a profissionalização foi a forma que as empresas encontraram de sobreviver depois da abertura a importações a partir dos anos 90. Uma inundação de tecidos e roupas baratas, vindos da China e de outros países, levou muitas confecções a fechar as portas. A solução, além da modernização do maquinário, foi abandonar a antiga prática de copiar o que era feito no exterior e buscar uma linguagem própria. "Deu uma quebradeira geral", conta Lucila Mara Sbrana Sciotti, diretora da Faculdade Senac de Moda. "Elas tiveram de se reinventar e se reestruturar para poder recuperar mercados."

O curso de moda do Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) já passou por várias modificações. Em 1994, ganhou impulso com um convênio fechado entre a instituição e a Esmod, escola de moda francesa —a mais antiga do mundo, com 160 anos de história. O convênio durou três anos e serviu de base para a abertura do curso superior. O bacharelado do Senac, com duração de quatro anos, foi inaugurado em 1999. Ele se divide em duas áreas básicas: estilismo e modelismo.

Adaptando-se às necessidades do mercado, a Anhembi Morumbi acaba de reformular seu curso e, agora, oferece quatro opções: produção de moda, desenvolvimento de produto, varejo de moda e merchandising. Quem quiser estudar por mais dois anos e completar a graduação pode focar em design (que inclui criação, desenho e construção de peças) ou em marketing, que forma planejadores.

O setor vive um efeito de bola-de-neve. Com a abertura de mais cursos de moda, mais profissionais começaram a chegar ao mercado na década de 1990. Com a entrada deles, as próprias empresas começaram a se interessar por pessoas formadas. Os que já tinham colocação perceberam a mudança e procuram as escolas para se atualizar.

Mas ainda há muito chão pela frente antes que o Brasil possa se considerar um grande centro produtor de moda —e não só fabricante de peças. Mesmo toda a atenção atraída por eventos de moda como a São Paulo Fashion Week ainda não se traduz em negócios. "A Fashion não movimenta nem 0,5% desse mercado. Trata-se muito mais de ego do que de profissionalismo", diz Beto Lago, criador do Mercado Mundo Mix, que abriu espaço para estilistas alternativos e movimenta, segundo ele, R$ 1,5 milhão por fim de semana.

Para ele, realidade é a moda que se vende no Brás e no Bom Retiro, bairros paulistanos que concentram as confecções que fornecem roupas para as butiques de vizinhanças mais nobres. Interessadas na profissionalização, essas confecções já saem atrás dos estilistas formados, que dão um direcionamento diferente às coleções. O próprio Mercado Mundo Mix está planejando lançar cursos curtos de estilismo no começo de 2004.

O processo pelo qual passou a moda há uma década pode ser comparado ao observado na gastronomia. Chefs conhecidos aprenderam sua arte em outros países ou começaram lavando pratos e avançaram para picadores de cebola até conseguirem mostrar seu talento com temperos e cozidos.

Divulgação
Aula prática de cozinha do curso de gastronomia da Anhembi Morumbi, em São Paulo
Em breve, no entanto, devem começar a aparecer os chefs formados nas escolas brasileiras. Não que a figura do imigrante nordestino, que já rendeu ótimos cozinheiros, vá desaparecer. "Afinal, é preciso ter mão para a arte, algo que nem sempre pode ser aprendido na escola", diz Josimar Melo, crítico gastronômico da Folha e professor da Universidade Anhembi Morumbi.

"Há quase três anos, estamos vendo um boom impressionante", diz ele. Todas as classes do curso, de dois ou três turnos por semestre, lotam. Na fila, 200 pessoas aguardam uma oportunidade. Aos alunos é passado não só um conhecimento técnico —70% do curso é prático— mas também uma formação humanística e de cultura geral, história, gastronomia e mesmo sociologia. Aprendem por que as facas adquiriram formatos diferentes em países diferentes ou como é a comida no Mediterrâneo.

"O perfil dos estudantes é interessante", diz. Mais da metade deles é composta por pessoas entre 35 e 40 anos que resolveram mudar de vida e virar mestres-cucas. "Vinte anos atrás, essas pessoas não tiveram coragem de dizer aos pais que queriam ser cozinheiros", diz Melo. Os objetivos de quem entra na faculdade variam. Há quem pense em abrir um restaurante, um negócio menor, uma confeitaria ou um bufê. Mas os formados também podem trabalhar em empresas de catering, em hospitais ou até em fábricas. Só uma minoria consegue montar e manter um negócio próprio.

Na cozinha, como na passarela, há glamour, e isso atrai candidatos. No Senac, os alunos têm perfis que vão de um extremo ao outro, segundo Ronaldo Lopes Pontes Barreto, coordenador de alimentos e bebidas da instituição. Vai do jovem aventureiro que se anima com o prestígio dos chefs ao que descobriu que é do ramo. "Os alunos têm de se conscientizar de que a profissão exige longas horas e trabalho no fim de semana e no Réveillon", afirma Barreto. "O chef trabalha quando os outros se divertem."

No currículo do Senac, há história da gastronomia, economia, sociologia e até microbiologia. "Comida é química", diz Barreto. As aulas de terminologia gastronômica, em que se aprende o jargão culinário, também são essenciais. O professor ensina aos alunos o modo correto de fazer e de escrever "cebola piquée", que vem cravejada com cravo-da-índia e louro, e também a mais comum "batata sautée", que se fala "sotê" —um chef que se preze não pode cometer a gafe de escorregar no francês.

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