Folha Online sinapse  
27/05/2003 - 03h18

Esponjas, canivetes e a relevância dos marginais

OSCAR PILAGALLO
Editor do Sinapse

A avaliação escolar, para além dos problemas práticos que suscita, é indissociável da percepção que se tem da mente, receptora e processadora do conhecimento.

Essa percepção tem mudado rapidamente, o que obriga pedagogos e educadores a realizar o nem sempre bem-sucedido trabalho de adaptar modelos de ensino.

Foi-se o tempo da indefectível analogia entre mente e esponja. A imagem até que não era má: embeber a esponja equivalia a acumular conhecimento; espremê-la sugeria lembrar-se de uma informação. Mas a comparação deixou de ser útil quando se percebeu que a mente não absorve, indiscriminadamente, toda a informação a que é exposta.

O advento dos computadores forneceu outra analogia, tão tentadora quanto passageira. Computadores, afinal, ao contrário da mente humana, nada criam.

Não obstante estarem desatualizadas, essas metáforas resistem em ambientes escolares menos arejados, com grande prejuízo para o aluno. Em exames e avaliações, ele é cobrado como se tivesse um cérebro sugador de qualquer conteúdo ou, pior, raciocinasse como base no sistema binário, como a máquina.

"A Pré-História da Mente" (Steven Mithen, Editora da Unesp, 425 págs., R$ 45)
"A Pré-História da Mente", de Steven Mithen, tangencia o assunto. O foco do arqueólogo é a evolução da arquitetura da mente. Mas o autor também se debruça sobre a questão da apreensão do conhecimento.

No prefácio, o antropólogo Walter Neves lança uma provocação: "Como vivemos num país onde os novos paradigmas das 'ciências' humanas demoram décadas para chegar, a pedagogia entre nós ainda apresenta forte tendência piagetiana". A provocação não é gratuita. Ele se refere ao fato de o psicólogo Jean Piaget (1896-1980), uma referência pedagógica, ter criado suas teorias sobre o desenvolvimento da mente a partir da premissa de que ela se assemelha a, justamente, uma esponja ou um computador.

Sem lembrar uma coisa nem outra, a mente —como vista por muitos psicólogos a partir dos anos 80— estaria mais para um canivete suíço. Como a mente, "cada elemento do canivete foi projetado para solucionar um tipo de problema bem específico", explica Mithen.

Vem daí a idéia da modularidade da mente, do psicolinguista Jerry Fodor, e a das inteligências múltiplas, desenvolvida pelo neurologista Howard Gardner. O trabalho de Gardner revela uma preocupação de ordem prática: está voltado para o desenvolvimento de políticas educacionais.

A nova percepção da estrutura da mente abre espaço para a valorização da criatividade —uma função da mente à espera da metáfora adequada. Cabe ao professor estimular o aluno a realizar seu potencial. O tratamento é necessariamente pessoal, porque nem todos têm as mesmas competências e habilidades, para insistir no binômio em voga.

Para levar a cabo sua missão, o professor não deveria perder de vista essas novas teorias. Mas guinadas profissionais nem sempre são fáceis. O establishment do ensino é naturalmente conservador.

"Uma História Social do Conhecimento" (Peter Burke, Jorge Zahar, 244 págs., R$ 36)
Não é de hoje que é assim. "A maioria dos primeiros letrados modernos não flutuava completamente livre, estando vinculada a instituições como as universidades", escreve o historiador Peter Burke, no recém-lançado "Uma História Social do Conhecimento". E conclui: "O contexto institucional do conhecimento é parte essencial de sua história".

Por isso, é mais fácil que a mudança necessária seja precipitada por quem está fora do sistema. Idéias brilhantes, sugere Burke, costumam aflorar mais em cabeças de "outsiders", de marginais. Ele ilustra a tese com a preeminência intelectual de judeus na Europa do século 19, quando começavam a ser assimilados à cultura cristã. Rejeitavam sua herança cultural e não a substituíam pela dos gentios. Na fronteira entre dois mundos culturais, tornaram-se inovadores intelectuais. A história do conhecimento, na visão de Burke, é pontuada por períodos de inovação e de resistência à inovação. Resta saber em qual nos encontramos.

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