Folha Online sinapse  
27/05/2003 - 03h14

Leia trechos de "Fomos Maus Alunos"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo dois trechos do livro "Fomos Maus Alunos", de Gilberto Dimenstein e Rubem Alves (colunistas do Folha Sinapse), recém-lançado pela Editora Papirus (R$ 19,90, 128 págs.).

Experiência de confluência

Dimenstein - Por que você virou educador?

Alves - Tenho a seguinte teoria (eu disse só a teoria, pois não tenho provas para isso): todos nós nascemos com determinados saberes. A aranha nasce sabendo fazer teia, o caramujo nasce sabendo fazer a concha. Meu conterrâneo de Boa Esperança, Nelson Freire, é um pianista absolutamente fantástico. Por que ele ficou um pianista fantástico? Não foi porque foi ensinado, não foi porque estudou muito. Porque eu estudei muito mais do que ele e nunca aprendi a tocar piano. É porque tinha algo dentro dele. Aliás, você que é judeu. Tem um dos salmos, terrível, que diz assim: Inútil te será levantar de madrugada e trabalhar o dia todo porque Deus, àqueles a quem ele ama ele dá enquanto dormem. Eu acho que nasci educador. De repente, descobri que é uma delícia comunicar idéias. Primeiro tem o projeto de gestação. Porque você tem de ter uma idéia para comunicar, aquela coisa que pega, dá paixão, e que para mim é um jeito de fazer amor com o outro. Isso tem a ver também com a sua tradição. Porque lá na Bíblia, quando diz que o marido transou com a mulher, como é que diz? Ele conheceu a sua mulher, que é um ato essencialmente prazeroso. Acho que o ato de educar é essencialmente sexual e prazeroso.

Dimenstein - É interessante, porque conhecer, do latim, vem de nascer com.

Alves - Eu não sabia!

Dimenstein - Só se conhece, de fato, alguma coisa quando nascemos com ela. Só entendemos a poesia quando nos emocionamos na descoberta de suas metáforas.

Alves - Às vezes, as pessoas me perguntam: Quem foi que influenciou você? Eu digo: Ninguém. Não tenho memória de alguém que tenha me influenciado. Influenciar é uma coisa que vem de fora para dentro. Eu tenho a experiência de confluência. Confluência é quando você bate com uma pessoa. Sabe quando você tem duas taças de cristal? Você bate as taças e as duas, então, reverberam. Há pessoas que bateram em mim e eu descobri coisas dentro de mim que ninguém me ensinou, mas eu descobri que as coisas estavam dentro de mim. Então, para mim, o educador tem muito a ver com isso. Você vai lá provocar, não para ensinar alguma coisa à pessoa. Isso é a teoria socrática da educação. Sócrates dizia que todos nós estamos grávidos de beleza, e que a tarefa do educador, como na história de A Bela Adormecida, é dar o beijo, o beijo para despertar uma inteligência que estava adormecida. Sabe quando foi que o escritor saiu da fundura onde estava e apareceu? Não foi porque eu estudei literatura; não foi porque aprendi gramática. Não foi nada disso! De repente, ele apareceu não sei como, mas tem a ver com dois momentos na minha vida. Num desses momentos, eu sou agradecido aos professores do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) da Unicamp, porque foi o período mais infeliz da minha vida depois do tempo que passei no Colégio Andrews. Todo mundo era marxista religioso, sem humor. Marx eu acho maravilhoso. Acho Marx muito divertido, muito poético. Mas os marxistas eram insuportáveis. E como eu era meio diferente, novamente tive a experiência de isolamento. Lia os livros que não eram para ser lidos, aparecia com livros. Eu era sempre colocado à margem. Então, fiquei cansado daquilo, de tentar obter boas notas com eles. Quando você escreve um paper, você escreve para quem? Para os seus pares, para que os pares o citem. Quando os pares o citam, isso quer dizer que você tirou boa nota — equivale ao boletim. Houve um momento em que eu estava com o saco tão cheio que falei: Não quero mais isso. Resolvi soltar as frangas. E isso teve a ver com uma experiência muito traumática na minha vida, que foi ver nascer uma filha com um defeito facial. Ela está ótima hoje. É arquiteta, paisagista. Mas quando ela nasceu, descobri que tudo aquilo que eu fazia na universidade não tinha o menor sentido para mim. Não era pão. Não tinha o que fazer com aquele conhecimento que eu tinha. Então, resolvi que, daquele momento em diante, só iria escrever coisas em que acreditasse e do jeito que eu quisesse escrever. Isso tem a ver com humor, com poesia, porque em artigos acadêmicos você não pode ter humor nem poesia.

Dimenstein - Eu já era adulto e fui a um psiquiatra. Disse a ele: Puxa, eu queria consertar essa minha incapacidade de focar as coisas, queria parar de desligar o telefone na cara da pessoa, achando que já havia terminado a conversa, de perder tudo, de ser desorganizado. De me dispersar, de falar várias as mesmas coisas, de pular palavras nos textos que escrevo, de ficar com olhar perdido durante uma conversa com um amigo ou amiga. Ele me disse: Gilberto, você se virou vida, não é? . E disse uma coisa que me fez entender um pouco como aprendo. Você é tão acelerado que presta atenção em muita coisa ao mesmo tempo. É como uma criança solta numa loja de brinquedos. Só que você consegue fazer uma ligação entre essas coisas. No auge do hipertexto, com o boom da internet, eu morava em Nova York. Foi um amor à primeira vista. Não me incomodava, muito pelo contrário, aquele forma não-linear da informação, na qual se ia pulando de galho em galho em segundos. Era como eu sempre fui na escola e na vida, ia prestando tenção em mil coisas ao mesmo tempo: No gaiteiro, na Segunda Guerra Mundial, em Biafra, em Bangladesh, na pílula anticoncepcional. Mas a escola dizia assim: Você tem de prestar atenção nisto aqui.

(...)

Lá vem os palhaços

Alves - Existe um filósofo genial, nem sei se ainda é vivo: Leszek Kolakowski. Ele tem um ensaio maravilhoso chamado O sacerdote e o bufão. Desenvolve a idéia de que toda a sociedade é formada por esses dois tipos de pessoas. Ele usa essas palavras metaforicamente. O que são os sacerdotes? São sacerdotes aqueles que acreditam nas regras, são os burocratas que fazem as coisas acontecer. São os banqueiros, aquele pessoal que leva as coisas a sério. São os membros, vamos dizer, de poder do ministério do rei. Mas tem um que é o bufão, que é o palhaço. Ele não tem grande poder, mas é capaz de introduzir o riso. E, na medida em que ele introduz o riso, é capaz de quebrar as coisas rígidas para permitir que mudanças aconteçam. Por causa disso, acho realmente que é esperar demais a gente imaginar a escola desse jeito, essa coisa fantástica com que a gente sonha. Por causa disso, há uma tendência natural para a inércia, há uma busca de segurança. As pessoas detestam insegurança, por isso preferem aquelas religiões que têm todas as respostas...

Dimenstein - Talvez o nosso papel, Rubem, seja alertar para a fraude.

Alves - Sim.

Dimenstein - E dizer: Olha, isso que você está ensinando não é educação. Você pode até continuar na escola, mas... Eu acho que, nesse nosso papel, talvez a gente nunca consiga mudar a escola. Talvez a escola seja uma instituição para acalmar o medo humano da incógnita. No entanto, a gente pode dizer: Isso tudo é uma fraude!

Alves - Você falou em denunciar a fraude e me fez lembrar de uma história do Andersen, A roupa nova do rei. Você conhece a história?

Dimenstein - Como é?

Alves - Um rei era apaixonado por roupas, adorava roupas. Mas ele era um rei muito simplório. Um dia, dois espertalhões foram falar com o rei e disseram que eram capazes de produzir uma roupa tão maravilhosa, mas tão maravilhosa, que somente as pessoas muito inteligentes, as mais bem dotadas seriam capazes de ver. Os espertalhões queriam fazer essa roupa para o rei. Ele ficou encantado. Então os espertalhões foram lá, levaram os teares, e começaram a tecer... Nada. E teciam que teciam, e o rei foi lá. Majestade, olha que cores lindas! O rei não viu nada, mas como sabia que somente as pessoas muito inteligentes viam a roupa, disse: Mas que coisa linda! Aí ele mandou o ministro da educação: o rei tinha visto, os homens tinham visto. O ministro da educação viu. O rei foi mandando todos os outros ministros. Todos os ministros viram aquela roupa e acharam-na absolutamente maravilhosa. Então, se anunciou o dia em que o rei iria desfilar em praça pública com a tal roupa maravilhosa. E o rei peladão saiu às ruas. a banda de música tocando, todo mundo olhando e dizendo: Oh, que roupa maravilhosa do rei! E o rei continua, até que, um menininho, trepado no alto de uma árvore, diz: O rei está pelado! — Você não conhecia essa história?

Dimenstein - Claro! Claro!

Dimenstein - Para saber se uma idéia é inovadora, basta ver se a maioria é contra, se mexe com os medíocres, que logo profetizam a inviabilidade do novo. O problema é que, só depois, vamos saber se aquela idéia é uma idiotice ou uma inovação. É tênue o limite entre o fracasso e o sucesso.

Alves - Como o caso do sorteio para o vestibular, todo mundo acha que eu sou um idiota.

Dimenstein - Por causa da burocracia e excesso de bom-senso e de senso comum , as corporações vão perdendo o ambiente inovador que as projetou. A maioria das pessoas tem bom-senso. E a inovação tem de, necessariamente, ir contra o bom-senso. É por isso que nós somos condenados a nunca reformar, de fato, as instituições e sempre ficar como bufão. Eu acho que o nosso trabalho deve ser meio palhaço, no sentido lúdico, sempre ir contra o bom-senso estabelecido.

Alves - É verdade!

Dimenstein - A gente vai às palestras, a gente fala mais ou menos bem, as pessoas gostam, as pessoas dão risada. No meu caso, já melhorou, porque antigamente riam nas minhas costas; mas, agora, riem na minha frente. Houve uma evolução enorme. Acho que nós fomos escolhidos para ser meio bufões do processo educativo. Nós falamos essas coisas todas e é óbvio que estamos certos, mas a razão pela qual conseguimos falar às pessoas é porque somos bem-sucedidos: livros publicados, prêmios ganhos. Quero dizer, não tenho diploma de palhaço, como o filho de sua amiga, Rubem. Contudo somos meio palhaços e as pessoas gostam disso. Percebo isso naqueles seminários de educação, geralmente chatos. O educador e o pedagogo têm uma coisa fantástica: eles não conseguem sequer ser educativos com os textos deles, muitos são incompreensíveis. Os livros de pedagogia são incompreensíveis. Os textos são horrorosos. Retomando. Então, quando chegamos aos seminários: Agora, pessoal, chegou o recreio, lá vêm os palhaços.

Alves - É isso mesmo, chegou o recreio.

Dimenstein - Lá vêm os bufões. Aí chegam o Rubem Alves, Dimenstein, o Paulo Paixão...

Alves - Esses caras não são sérios! Não é verdade?

Dimenstein - Tem o recreio e todo mundo bate palma. Aí vão falar com o bufão É como uma festa de criança. Depois: Agora tira o palhaço que vai ter o bolo e nós vamos levar vocês para casa. E os palhaços vão para casa até ter uma outra festa. Nesses seminários, a gente fala coisas que têm fundamento, mas o pessoal diz assim: Puxa! Nunca teremos uma escola em que a base seja a experimentação, em que a incógnita não seja um empecilho e sim um estímulo para que você tenha talvez que estudar a vida toda. Na nossa escola, o último dia de vida é igual ao último dia de aprendizado. Na nossa escola, o ato de viver é sinônimo do ato de aprender. Se você falar isso para um professor, ele dirá: Estou aqui ensinando álgebra na minha apostila, quê que tem isso com viver? Acho que o fato de ter sido mau aluno me deu a vocação de palhaço comunicador. Mesmo como comunicador eu sou meio palhaço na minha categoria, já que, há anos, prefiro sempre ver o lado positivo de uma notícia. Nós aprendemos que a boa notícia é o fato trágico, o conflito, o impasse.

Alves - Agora, na maldade psicanalítica, é uma espécie de vingança, não é não? Eu já tive essa experiência, quer dizer: eu fracassei, mas, vejam, agora, eu triunfei a despeito de vocês. Psicanaliticamente falando, é uma forma de a gente exercer uma vingança de uma maneira inversa: Não precisei da escola para fazer o que faço.

Dimenstein - Pior do que não precisar, tive de matar a escola dentro de mim — como você tem de matar o seu pai para poder crescer — para poder exercer esse papel de palhaço educativo. Estou dizendo isso como alguém que veio do mercado de trabalho em empresas de ponta. Eu venho do mercado de trabalho e estou vendo o que as empresas demandam, o que elas querem. Se a escola não trabalhar diferente com a incógnita, ela não vai formar o indivíduo para ficar empregado. E é aí que eu digo que é fraude. Da forma como o aluno está aprendendo, ele nunca vai gostar de Shakespeare, de Graciliano Ramos. Temos um processo de darwinismo educativo, no qual sobra quem sabe melhor relacionar informações, idéias, gerenciar a avalanche de dados fora de contexto. A pessoa não foi preparada para lidar com isso. É a mesma coisa: me coloca com um joguinho de computador na mão brincar com o meu filho; eu não ganho nesse joguinho. Vamos partir do pressuposto imbecilizado da escola — O que você vai ser quando crescer? — se a escola diz que vai preparar, então, a escola precisa preparar o aluno para ser alguma coisa quando crescer. Suponhamos que eu concorde com essa escola, a pessoa vai ficar um tempão aprendendo, porque pretende alguma coisa quando crescer. Porém, o que estão ensinando não vai preparar ninguém, pois o aluno não vai conseguir ser um médico capaz de acompanhar as evoluções da biotecnologia, ou um físico capaz de acompanhar todas as descobertas da física quântica, ou um biólogo...
Alves - É impossível acompanhar todos os conhecimentos. Por isso, é inútil armazenar conhecimentos que vão estar velhos dentro de dois anos. É no momento que sou desafiado que devo procurar o conhecimento e não simplesmente um arquivo que eu trago comigo. Essa coisa de aprender a procurar. Os professores ensinam saberes. Dão a matéria. Eu me lembro que na escola existia um sistema de pontos. Você alcançou o sistema de pontos?

Dimenstein - Não.

Alves - Você sabe o que é ponto?

Dimenstein - Tem de pegar o ponto, não é?

Alves - Não. O ponto era assim: você tinha um ponto (um texto) sobre rochas. Você tinha de decorar aquele ponto. A professora chegava: Rubem, levante-se: rochas. Então, eu tinha de dissertar o ponto. Eu tinha um colega que se chamava Paulo. Eu me lembro como se fosse hoje... O pai do Paulo tinha uma oficina mecânica. Quer dizer, o Paulo, desde criança, entendia tudo sobre metais. Ele sabia o que fazer, como serrar metal, pois trabalhava com o pai dele, sabia tudo. E tínhamos o ponto metal. Eu me lembro como se fosse hoje. A professora: Paulo: os metais. Eu me lembro do olhar perdido do Paulo, tentando desesperadamente reconstituir o que estava escrito na folha do caderno. E da boca do Paulo só saíram duas palavras: Dúctil e maleável. Veja que coisa! Eu era um menino de nove anos. Fiquei tão horrorizado. Ele podia ter falado horas sobre metais, pois porque fazia isso todo dia. A escola não quer saber o saber dos conhecimentos que a criança já tem.

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