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24/06/2003 - 03h14

Para restaurar uma profissão

MARIA ANGÉLICA FERRASOLI
free-lance para a Folha de S.Paulo

Embora resistam bravamente ao tempo e aos modismos e inspirem novas criações, esculturas, pinturas, documentos e construções históricas são bens finitos. Mantê-los vivos para o olhar do futuro é a função dos conservadores-restauradores, trabalhadores de sofisticadas técnicas multidisciplinares cuja profissão ainda não é reconhecida no Brasil. Mercado de trabalho, em tese, não lhes deveria faltar. Segundo dados do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), cerca de 50% dos imóveis históricos tombados no país encontram-se degradados e 25% precisam de obras de recuperação. São goteiras, calhas quebradas, ausência de climatização adequada ou até de instrumental básico. A consequência para os tesouros culturais ali abrigados é a mesma: destruição.

Fotos Cris Bierrenbach
Alessandra Ferrari, que restaura pinturas sobre bens móveis e imóveis
A falta de investimento em conservação também tem criado situações-limite para o patrimônio cultural brasileiro, como o incêndio que destruiu um dos casarões históricos de Ouro Preto, em abril deste ano, e a má conservação que deixou em ruínas cerca de 250 edificações no centro histórico de Salvador.

Sem cursos de nível médio nem de graduação disponíveis, o candidato a conservador-restaurador no Brasil tem poucas opções para iniciar a carreira, embora existam algumas conceituadas escolas que oferecem especialização e que contam com profissionais de reconhecimento internacional em seu quadro de professores.

Ainda assim, há anos não surgem na área pública vagas expressivas para esses profissionais, muitos deles formados no exterior (o Brasil não mantém cursos de graduação na área) e que acabam optando pelo trabalho para colecionadores particulares —mais rentável, mas igualmente mais limitado.

"Um dia, a obra do colecionador acaba indo para um museu, torna-se um bem público. Só que já pode ter sofrido muitas intervenções para ficar ao gosto do proprietário particular, o que contraria o que hoje pensamos sobre o restauro, que deve ser o menos agressivo possível", explica Valéria de Mendonça, coordenadora do ateliê de restauro e conservação da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Técnica gráfica de formação, Valéria ingressou na área de conservação e restauro há dez anos, com um curso que formou a maior parte da atual geração de profissionais em São Paulo, o do professor Domingo Tellechea, no MAM, encerrado há três anos.

Na pequena equipe da Pinacoteca, todos passaram pelas aulas do professor. Exceção feita aos períodos de projetos especiais, são apenas quatro restauradores fixos e um auxiliar para a manutenção de um acervo de 6.000 obras —1.500 expostas e 4.500 acondicionadas como "reserva técnica".

Valéria de Mendonça, no Ateliê de Restauração da Pinacoteca do Estado

Se, em São Paulo, o fim das aulas no MAM deixou uma lacuna na formação desses profissionais, como avalia Valéria, a situação é ainda mais grave quando se contabilizam os estragos da ausência no restante do país.

No ano passado, as obras de restauração do Museu Histórico de Santa Catarina, o Palácio Cruz e Souza, ficaram condicionadas à criação de um curso em nível técnico para conservadores-restauradores. Orçado em R$ 650 mil, o projeto pretendia criar mão-de-obra na área de pintura mural, unindo as necessidades de pessoal e as do prédio. A idéia, porém, não foi adiante. "O custo foi considerado muito alto", afirma a diretora do museu, Suzana Bianchini.

O resultado da demora é que a pintura está rachando (ou "craquelando", como dizem os profissionais) e se perdendo. "O museu precisa de ajuda com urgência", afirma. Datado do século 18, o prédio passou por várias reformas até adquirir as características que (ainda) mantém, do ano de 1895.

"Hoje, ou se aprende na prática, nos ateliês, ou é preciso sair do país", diz Luiz Antonio Ewbank, presidente da Abracor (Associação Brasileira de Conservadores-Restauradores de Bens Culturais), sediada no Rio de Janeiro, que reúne cerca de 500 associados. Curador do Palácio do Itamaraty (RJ), com estudos em história da arte, Ewbank aperfeiçoou-se em Roma, no Iccrom (Centro Internacional para o Estudo da Preservação e Restauração da Propriedade Cultural), criado após a Segunda Guerra.

O representante da Abracor e a presidente da APCR (a entidade paulista dos profissionais), Maria de los Angeles Fanta, defendem a criação de cursos formais (de nível médio, técnico e de terceiro grau) como forma de qualificação e capacitação de novas gerações de conservadores-restauradores e, é claro, de reconhecimento da profissão —que hoje tem como princípio mais a conservação do que o restauro (prevenir para não ter de remediar a um custo mais alto). "O conservador-restaurador é um técnico, tem de ter uma formação técnica e científica para poder trabalhar", diz.

Sem tal reconhecimento, ficam pendentes questões como a salarial ou mesmo a da segurança no trabalho. Muitos conservadores-restauradores operam diariamente com produtos químicos e tóxicos e, quando adoecem, não há legislação que os proteja. "Continuamos a estudar o problema com nossos advogados e pretendemos levar o assunto ao conhecimento do ministro da Cultura", afirma Maria de los Angeles.

À esq., brasão da República em tecido, do início do séc. 20, após restauração; à dir., Teresa de Paula trabalha em uma bandeira do Contestado

De acordo com Victor Martins dos Santos Júnior, assessor do núcleo de formação e fortalecimento institucional do Monumenta —programa mantido há cinco anos pelo Ministério da Cultura e pelo Banco Interamericano—, a parceria com escolas técnicas para a formação desses profissionais em nível de segundo grau é uma possibilidade ainda em estudo. Segundo Martins, o Monumenta já participou da formação de 34 mestres restauradores brasileiros, que passaram dois meses e meio em Veneza (Itália), onde estudaram conservação e restauro aplicados a ofícios como os de pintor, carpinteiro, pedreiro, serreiro, estucador e canteiro.

A idéia é que esses mestres possam integrar núcleos criados pelo programa para formar outros profissionais especializados. No curto prazo, porém, o que o Monumenta oferecerá de concreto são cursos pontuais como os que acontecerão na 5ª Bienal Internacional de Arquitetura e Design de São Paulo, em setembro.

A dificuldade para delimitar a atuação do conservador-restaurador é compreensível. A profissão, que até alguns anos atrás era vista como trabalho de artistas e arquitetos frustrados, ganhou entendimento e dimensões de trabalho inexploradas. Operar a precisão do restauro exige conhecimentos que vão da microbiologia à física, da química à entomologia e à toxicologia. A atividade, assim, deixa de ser reduto daqueles profissionais ligados à área de humanas, atraindo gente das ciências biológicas e exatas.

A história de Teresa Cristina Toledo de Paula, que atua no Museu Paulista, demonstra o quanto é necessária essa pluralidade de conhecimentos para tratar de bens culturais. Teresa é atualmente uma das raras profissionais no país a ter domínio das técnicas de preservação e recuperação de tecidos. Mas seu ingresso na área aconteceu "quase por acaso", quando foi trazida por um colega que trabalhava com restauração de papel.

No Museu Paulista, uma das peças que precisava de cuidados era um lenço comemorativo da Guerra do Paraguai. Ela foi chamada para colaborar com a tarefa, que era um desafio para os restauradores locais. "Imaginava-se que a técnica de restauração do lenço poderia ser similar à do papel. Interessei-me pelo assunto e acabei recebendo um convite para um curso em Londres", afirma.

Na Inglaterra, Teresa aprendeu que a maneira de recuperar o tecido nada tinha de parecido com as técnicas para o papel. Pela própria experiência, ela defende que sejam ampliadas as ofertas de cursos, mas, ao contrário de muitos colegas, não vê na graduação um caminho para a valorização da profissão. "O que é necessário é melhorar a especialização", diz.

É na área que a levou ao complexo caminho da preservação de bens culturais —a do papel— que está hoje um dos mais bem estruturados segmentos da carreira. Há 15 anos, foi criada em São Paulo a Aber (Associação Brasileira de Encadernação e Restauro), que reúne 300 associados, entre profissionais e entidades ligados à conservação e à restauração de livros, documentos e encadernação artesanal.

"Acredito que, num futuro bem próximo, o curso de graduação terá início", afirma Norma Cianflone Cassares, diretora da entidade, que mantém um curso de nível técnico em parceria com o Senai e já formou cerca de 150 profissionais. Química industrial, com estágio no Laboratório de Papel da Bibilioteca do Congresso dos EUA, Norma explica que o mercado de trabalho nesse segmento é bastante diversificado, assim como a remuneração. "Não há tabelas de preço, pois cada obra requer um tratamento específico."

A situação se repete nas demais áreas envolvidas no processo de conservação e restauro. "Ganho mais do que se possa imaginar e menos do que mereço, porque, com tantos obstáculos enfrentados pelo profissional no Brasil —material importado, equipamentos caros—, é difícil levar adiante um trabalho", afirma Alessandra Ferrari, conservadora-restauradora de pinturas sobre bens móveis e imóveis com especialização em Roma, cujo ateliê atende a colecionadores particulares. Alessandra é uma ferrenha defensora da graduação no país. "O profissional tem de ir pra fora, sim; a Europa é o berço da restauração. Mas a base pode ser brasileira", afirma.

Na arquitetura, preservação e recuperação de patrimônios públicos também é matéria de pós-graduação ou especialização, com mercado de trabalho reduzido aos órgãos públicos. "A maior parte dos arquitetos que se dedicam exclusivamente à área de conservação e restauro tem sua formação baseada em relatos de outros profissionais e bibliografia sobre o assunto e, muitas vezes, na experiência prática de soluções", explica a professora Helena Ayoube Silva, que, ao lado do também arquiteto e professor Antonio Carlos Barossi, é responsável pelas obras de recuperação, restauro, adequação e manutenção da antiga mansão Vila Penteado, o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP na rua Maranhão, no bairro de Higienópolis.

A universidade, que pretendia finalizar as obras de recuperação do majestoso palacete no ano passado, durante as comemorações de seu centenário, também sofreu com a falta de verbas para concretizar o projeto —atualmente, apenas 30% dos serviços de recuperação, restauro e adaptação estão em fase de conclusão.

Embora seja uma profissão relativamente nova no Brasil, os próprios profissionais de conservação e restauro também não têm, ainda, sua memória devidamente preservada. O pouco que se sabe é que o pioneiro da profissão foi o pintor mineiro Edson Motta, cuja morte, em 1981, aos 71 anos, mereceu de Carlos Drummond de Andrade a seguinte homenagem: "Edson Motta consumia o seu tempo na ressurreição (é bem o termo) da arte dos outros. Manter-se criador, sem egoísmo, antes dedicando-se aos outros, do passado como do presente, quantos serão capazes de realizar esse destino da maior simplicidade e pureza?".

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