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24/06/2003 - 03h28

Aprendizes de RPG

REINALDO JOSÉ LOPES
free-lance para a Folha de S.Paulo

Ao telefone, a professora do ensino fundamental Rosangela Basilli Beraldo Mendes, 41, está tão rouca que fica até difícil entender o que diz. Diferentemente do que se poderia imaginar, porém, a rouquidão não é o subproduto de uma classe indisciplinada, mas de alunos empolgados e participativos, disputando a atenção dela, mesmo numa aula cujo tema (a boa e velha tabuada) é proverbialmente chato. Toda essa empolgação, afirma a professora, se deve ao uso do RPG ("roleplaying game" ou "jogo de interpretação", na sigla inglesa) como forma de motivar as crianças a aprender.

Fotos Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Alunos da quarta série da Escola Municipal D. Pedro 1º jogam RPG durante aula

Apontado há tempos como um potencial instrumento pedagógico, só agora o jogo parece estar saindo do armário escolar no Brasil. Iniciativas de professores, empresas e organizações não-governamentais, assim como a publicação de RPGs com o propósito declarado de serem usados na sala de aula, estão levando o jogo além das fronteiras às quais se restringia (em geral, o universo dos adolescentes fascinados pela temática medieval e fantástica). Ao mesmo tempo, a técnica ainda precisa enfrentar o fato de ter sido associada à fuga da realidade, à violência e até ao satanismo (leia mais aqui).

Para o editor Douglas Quinta Reis, da Devir (principal editora do gênero no Brasil), o jogo já tem, de saída, uma vantagem: toma partido da tendência natural para brincar de faz-de-conta. "A criançada já faz isso naturalmente, eles não têm freio na imaginação", afirma. Em essência, o RPG é uma elaboração coletiva desse tipo de brincadeira e do hábito ancestral de contar histórias. O grupo de jogadores é coordenado por um mestre, que propõe a eles um cenário e uma história na qual as ações do grupo acontecem.

Cada jogador, que representa um personagem à sua escolha, é co-autor da história: as decisões que os personagens tomam afetam o rumo da aventura (nome dado à sessão de jogo), que pode ter este ou aquele final dependendo dessas escolhas. Ações em que há um elemento de sorte envolvido, como combates ou manobras arriscadas, são em geral decididas com os dados. O mais comum é que o jogo aconteça em volta de uma mesa, mas há também o estilo "live action" (ação ao vivo, em inglês), mais teatral, com jogadores fantasiados.

Não há vencedores nem perdedores: o grupo trabalha em equipe, e os antagonistas são representados apenas pelo mestre. Em princípio, qualquer cenário se presta a uma aventura de RPG, da Grécia de Platão ao universo da saga "Guerra nas Estrelas", passando por uma favela moderna no Brasil. Mesmo assim, a associação com cenários medievais fantásticos (como o do romance "O Senhor dos Anéis") ainda é forte, sendo contrabalançada nos últimos anos por temas góticos (como o do RPG "Vampiro - A Máscara").

O principal obstáculo para que o sistema dê certo na sala de aula, por enquanto, é o próprio desconhecimento da imensa maioria dos professores.

Por enquanto, o enfoque educativo do RPG tem se concentrado no ensino de história —há versões simplificadas do jogo que abordam as Cruzadas, o quilombo dos Palmares e os bandeirantes. Mas, para seus defensores, a tática é interdisciplinar por natureza.

Os alunos da quarta série de Rosangela Mendes, na Escola Municipal D. Pedro 1º, em São Paulo, misturaram ambiente e matemática ao interpretarem arqueiros élficos (inspirados nos elfos de "O Senhor dos Anéis") que tentam proteger a Amazônia. "Eles tinham de encontrar 12 flechas mágicas, que eram a tabuada", conta a professora. Cada aluno cria seu personagem desde o começo do ano e acompanha sua evolução atualizando sua ficha de personagem no caderno, o que ajuda a burilar também o português, segundo ela. "Eu tinha uns 15 alunos que não liam e não escreviam direito", conta Mendes. "O jogo mudou isso. Os pais às vezes não entendem o que é aquilo, mas sabem que o filho está fazendo a lição de casa e está lendo."

O professor de educação física Gilsmy Malaquias Boscolo, 30, que introduziu o RPG como atividade suplementar em suas aulas na Escola Estadual Dr. Elias Massud, em Monte Mor (região de Campinas, interior de São Paulo), notou a mesma mudança: "O interesse pela escrita e pela leitura aumentou diretamente por causa do jogo", conta. Hoje em outra escola, Boscolo está incentivando seus colegas a adotarem a prática.

Maria do Carmo Zanini, da ONG Ludus Culturalis, que incentiva o RPG na educação
Ambiente e cidadania estão entre os temas mais procurados por alunos e professores, diz Marcos Tanaka Riyis, 31, da Jogo de Aprender, uma empresa de Sorocaba (interior de São Paulo) que aplica principalmente os "lives" em escolas particulares e públicas. Para evitar a complicação de personagens demais para poucos mestres, o professor de educação física sugere dividir as classes em grupos de cinco a sete alunos, cada um sob o cuidado de um "submestre", realizando tarefas específicas. "No final, os grupos, que achavam estar competindo entre si, descobrem que só conseguirão seu objetivo se se juntarem, o que enfatiza o aspecto cooperativo", explica.

Nos "lives" ambientais, alunos da sétima e da oitava séries precisam recuperar artefatos mágicos (sob a guarda de seres mitológicos brasileiros como o saci-pererê ou o curupira) para derrotar o vilão alienígena Zargon, que quer destruir o ambiente global. Para conseguir os objetos místicos, os alunos realizam uma tarefa cooperativa e respondem a uma pergunta do ser mitológico que encontraram —sempre sobre um tema ambiental tratado previamente, como o aquecimento global ou os alimentos transgênicos. Questionários aplicados depois do jogo revelaram que todos os alunos acertavam pelo menos metade das questões sobre o tema tratado —contra 67% dos alunos que não participaram do jogo.

"É preciso ter em mente que o RPG não é um título, é uma forma de narrativa", diz o educador e escritor Carlos Klimick, 34, um dos criadores de "Desafio dos Bandeirantes", o primeiro RPG com temática brasileira. Klimick está usando o jogo com deficientes auditivos de seis a oito anos de idade no Ines (Instituto Nacional de Ensino de Surdos), no Rio de Janeiro, além de ter o RPG como tema em seu projeto de mestrado em design de jogos educativos na PUC-RJ. Klimick diz preferir a aplicação do RPG fora da sala de aula, mas considera que a transmissão de conteúdos difíceis pode ser facilitada pela dinâmica do jogo. "Um aluno me disse uma vez que só conseguiu entender o que era um mecenas [os patrocinadores endinheirados dos artistas da Renascença] interpretando um artista do Renascimento e tendo de procurar um", conta.

Reis afirma ser possível transmitir conceitos de qualquer disciplina com criatividade. "O jogo no qual estamos trabalhando agora tem como tema Líbero Badaró [jornalista e ativista político cujo assassinato ajudou a derrubar D. Pedro 1º]", diz. "Pouca gente sabe, mas ele veio ao Brasil para estudar ervas medicinais. A idéia é que ele teria achado uma cura para a varíola, que ficou perdida e é redescoberta pelos jogadores nos dias de hoje."

De uma tacada só, seria possível trabalhar história do Brasil, biologia e até geopolítica, já que a varíola está na lista dos patógenos que poderiam ser usados por bioterroristas.

"O importante é não cair na obviedade", ensina Maria do Carmo Zanini, da ONG Ludus Culturalis, que procura promover o RPG como ferramenta educativa. "Não dá para o professor dizer: 'Vocês são um grupo de cavaleiros, bruxos etc. que entra num labirinto. Lá vocês encontram uma esfinge, que só vai deixar vocês passarem se responderem um enigma. O enigma é: sabendo que 2x+5 = 10, qual o valor de x?'", brinca. Criatividade do professor e dos alunos é sempre indispensável.

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