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26/08/2003 - 02h52

Perfil: Um linguista no meio da floresta

REINALDO JOSÉ LOPES
free-lance para a Folha de S.Paulo

MAURÍCIO SIMIONATO
free-lance para a Agência Folha, em Belém

Dois índios idosos conversam num português um tanto truncado. Parece claro que eles tentam se lembrar de alguma coisa, usando a conversa e a experiência partilhada em uma vida toda para tentar chegar a ela, mas o observador logo percebe que não se trata de uma coisa, mas de uma palavra: como é mesmo que se dizia "tomar banho"? Depois de uma noite em claro, a dupla volta a conversar, e a minúscula peça do quebra-cabeças de um idioma em extinção reemerge por uns instantes. Atenta à conversa, que acompanha com o consentimento dos índios, uma linguista grava e transcreve a palavra —mais um pedaço de um idioma amazônico que escapa do esquecimento.

Carlos Silva/Folha Imagem
Moore, no museu Goeldi, onde trabalha
A cena revela parte dos desafios enfrentados pelo linguista norte-americano Dennis Albert Moore e seus colegas do Museu Paraense Emilio Goeldi, em Belém. Moore coordena um projeto aprovado em março deste ano pelo Programa de Documentação de Línguas Ameaçadas, do Reino Unido, para registrar cinco línguas do tronco tupi que estão sob ameaça urgente de extinção: xipaia, puruborá, mondé, mequém e aiuru.

Colocar lado a lado pessoas que já falaram o mesmo idioma para tentar relembrá-lo não é exatamente um procedimento ortodoxo, mas Moore sabe que é preciso ser criativo —e rápido. Menos de 200 línguas indígenas ainda resistem no Brasil, mas estima-se que elas correspondem a algo entre 15% e 25% da diversidade linguística que existia antes do Descobrimento. Desses idiomas, cerca de pertencem às dez famílias linguísticas do tronco tupi, que têm uma origem comum e um grande impacto na pré-história e na história da Amazônia e do Brasil.

Quase ninguém chama Moore pelo nome inteiro, que costuma ser reduzido para Denny ("Infelizmente, as pessoas vivem confundindo com o da Demi Moore", reclama, bem-humorado). Nascido na cidade de Midland, no Estado norte-americano de Michigan, Moore vive no Pará desde 1986, quando teve aprovada sua primeira bolsa de pesquisa no museu Goeldi.

Contudo, o pesquisador de 58 anos conhece o Brasil desde 1975, quando ainda fazia seu doutorado e acabou atraído pela diversidade dos idiomas amazônicos. "Quando estava na pós-graduação em Nova York, lembro de ouvir um linguista dizer que os idiomas mais desconhecidos estavam na Nova Guiné e na Amazônia", recorda. Era o empurrão que faltava para ir até Rondônia.

Raio-X

Nome: Dennis Albert Moore
Idade: 58 anos
Estado civil: solteiro
Formação: graduação em psicologia pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, doutorado em antropologia cultural e linguística pela Universidade da Cidade de Nova York
Profissão: coordenador de linguística da área de ciências humanas do Museu Paraense Emílio Goeldi
Hobby: "Nada, só o trabalho mesmo


"Foi difícil", diz Moore, sem notar o próprio eufemismo —afinal, a primeira temporada no campo, de dois anos e meio, pôs sua persistência à prova. Além dos problemas que teve com a malária e com uma doença conhecida como "espru tropical" (provavelmente causada por microrganismos, que atrapalha a absorção dos alimentos pelo organismo e até hoje impede que ele beba álcool), o então doutorando ainda teve de lidar com conflitos entre índios e seus vizinhos.

"Foi uma encrenca com dois suruís. No fim, foi um mal-entendido. Eles são pessoas decentes, que queriam defender o povo deles", pondera Moore, que hoje conta com a ajuda desses mesmos índios em seu trabalho de campo. Nos intervalos das próprias doenças, ele cuidava de membros da tribo gavião, com quem vivia, usando sua formação como enfermeiro de combate.

O momento era complicado para as tribos da região, acuadas pelos projetos de desenvolvimento do regime militar. A conexão com os índios se fortaleceu cada vez mais após a primeira viagem: "Eu me sinto adotado por eles. O ideal seria morar seis meses lá e seis meses aqui —lá eu não pago aluguel", brinca.

Foi só em meados dos anos 80 que o linguista conseguiu ser admitido como bolsista no museu Goeldi, centrando seus esforços nas línguas do tronco tupi —nada menos que metade das famílias linguísticas do grupo estão concentradas em Rondônia, o que sugere que o Estado é o ponto de partida da grande migração tupi em direção à costa do Brasil.

Para trabalhar, Moore sempre teve tempo. Mas, para outras atividades, nem sempre. "Nos primeiros dez anos de Goeldi, eu trabalhava 70 horas por semana, agora são 60", conta.

Hoje, Moore consegue ao menos horas livres para usar a internet, fazer cooper e frequentar uma academia pelo menos uma vez por semana, quando está em Belém. Televisão, que ele detesta e considera emburrecedora, não faz parte desses raros momentos de lazer.

O linguista diz ter notado desde cedo a necessidade de formar profissionais na área para estudar os idiomas indígenas brasileiros e conseguiu criar um intercâmbio importante entre os estudantes do Brasil e os principais centros de estudos linguísticos no exterior.

"Com o encorajamento de Denny, alguns alunos brilhantes das línguas indígenas do Brasil vieram trabalhar em nossa faculdade nos últimos anos", diz Michael Silverstein, do Departamento de Linguística da Universidade de Chicago.

Contando os resultados de todos os pesquisadores que trabalham ou já trabalharam no museu e hoje colaboram com Moore, mesmo baseados em outras instituições, cerca de 15 línguas são estudadas pela equipe.

Moore se diz totalmente à vontade nesse complicado mar de idiomas. "É o maior tesão", brinca, com o sotaque carregado que ele mesmo assume ser "de gringo". A compenetração e a seriedade costumeiras dão a lugar à empolgação: "Eu gosto de ver os padrões, senti-los —é um pouco como matemática. É bonito ver como esses padrões se encaixam e como as coisas funcionam. No fundo, é um trabalho muito analítico."

Contrariando a imagem tradicional do linguista capaz de se virar em dezenas de idiomas e dialetos, ele é muito modesto quanto ao seu domínio efetivo das línguas: "Falo alguma coisa de gavião e já soube também um pouco de nheengatu [uma versão do tupi da costa brasileira que foi espalhada pela bacia amazônica com a ajuda dos jesuítas, por séculos a principal língua franca dos colonizadores e dos grupos da área]. Das regras, eu sei tudinho", afirma Moore.

Falar o idioma gavião, da família linguística mondé, já é um desafio à parte —trata-se de uma língua tonal. "Basicamente, há dois tons, mas uma sílaba prolongada pode ter até três tons em sequência, produzindo contornos", explica o linguista.

O sistema lembra um pouco o chinês. Mal comparando, é como se as sílabas pudessem ser pronunciadas em tons musicais diferentes, de forma que uma sílaba em dó poderia significar uma coisa, e outra, dita em lá, algo completamente diferente. "Com as sílabas curtas e prolongadas, você tem, no final, dez possibilidades de combinação."

Apesar de complicado, o gavião ainda é um dos primos ricos do tupi amazônico: é falado por 360 pessoas e transmitido fielmente de pai para filho. O trabalho da equipe do museu Goeldi fica mais complicado e urgente com línguas como o mondé ou o puruborá, que têm só um punhado de semifalantes —pessoas que utilizaram a língua há muitos anos, talvez só na infância, e mal se lembram dela hoje. Nesses casos, técnicas pouco ortodoxas são mais do que justificadas. "Reunir os semifalantes foi uma sugestão dos índios —e parece ter funcionado", conta o pesquisador.

Ao mesmo tempo, os linguistas do museu sabem que até as línguas ainda vigorosas podem se beneficiar caso seus falantes sejam alfabetizados nelas. É por isso que eles estão tentando avaliar até que ponto as cartilhas de alfabetização indígena transcrevem de forma adequada e padronizada o idioma que pretendem representar. "Quantos grupos têm alfabetos e ortografias que funcionam? Atualmente, ninguém tem essa informação", frisa o linguista.

Depois de cinco anos ininterruptos de pesquisa, o linguista tirou férias no ano passado e foi rever amigos e parentes nos EUA. Elogiando o Brasil, Moore se declara fã do roqueiro Raul Seixas (1945-1989) e de canções como "Gita" e "Há 10 mil Anos Atrás". "É como um amigo meu, que diz o que eu estou sentindo", afirma.

"Adoro também a comida paraense, principalmente o açaí. Acho fantástico existirem milhares de pessoas viciadas nessa espécie de lama vegetal", diz Moore, que devora a fruta pura, sem açúcar. Solteiro e sem filhos, o linguista vive em uma casa espaçosa e cheia de árvores em um bairro afastado do centro de Belém, de cujo quinhão de plantas frutíferas ele faz questão de cuidar pessoalmente. "Estou à procura da morena dos meus sonhos. É também por isso que estou no Brasil", brinca.

Por enquanto, a prioridade do trabalho do pesquisador e de seus colegas é evitar a sombra da extinção para o maior número possível de idiomas indígenas. "Faz tempo que estamos conscientes disso —e preocupados. Um índio djeoromitxi me disse recentemente que ele pensava que sua língua fosse desaparecer, mas que já mudou de opinião, após um projeto do museu. Por isso, estou encorajado. A situação mudou, e isso está vindo a partir dos próprios índios, também", diz Moore.

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