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26/08/2003 - 02h58

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ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Enquanto a engenharia genética não desenvolve um ser humano com tecla SAP, milhões de pessoas convivem diariamente com a dificuldade de aprender uma língua estrangeira. Todo mundo sabe da importância, nos dias de hoje, de um segundo idioma, mas a pergunta que muitos fazem é: por que uns aprendem rapidamente, e outros, por mais que precisem e se dediquem, não conseguem?

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Manuel Antônio da Silva, professor da Unicamp
Como tudo que envolve um ser complexo como o humano, a receita do aprendizado não é simples, e as medidas variam de um indivíduo a outro. Mas, segundo especialistas, os ingredientes básicos são: exposição precoce e constante ao idioma, capacidade auditiva, inteligência, motivação e (muita) dedicação.

A linguagem é estudada pela chamada "ciência cognitiva", que reúne áreas díspares como psicologia, ciência da computação, linguística, filosofia e neurobiologia. Por ser uma ciência nova —surgiu há cerca de 40 anos— e envolver tantas áreas, é também muito polêmica. Alguns pesquisadores defendem que a linguagem é um instinto natural, inerente a todo ser humano. Outros, mais ligados às ciências humanas, afirmam tratar-se de uma invenção cultural, uma manifestação da capacidade humana de usar símbolos.

O primeiro a propor a linguagem como um tipo de instinto foi o pai da teoria evolucionista, o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1892). No século 20, o principal expoente dessa tese foi o linguista norte-americano Noam Chomsky, que revelou a complexidade do sistema. Chomsky parte do princípio de que há uma gramática, inerente a todos os falantes de qualquer língua, que faria com que ninguém optasse por uma estrutura altamente errada, entre as infinitas combinações possíveis de palavras.

Steven Pinker, "discípulo" de Chomsky e diretor do Centro de Neurociência Cognitiva do MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos EUA, propõe uma fusão dos seus dois antecessores no livro "O Instinto da Linguagem" (Martins Fontes, 2002). Pinker aponta que ainda não foi localizado um "órgão" da linguagem ou um "gene" da gramática. Entretanto, sabe-se que as áreas ligadas à linguagem estão majoritariamente concentradas no hemisfério esquerdo do encéfalo. Essas áreas são adjacentes, formando um território contínuo, e são responsáveis por atividades como o processamento gramatical, dos sons das palavras e de alguns aspectos de seu significado.

O aprendizado de uma língua, seja ela materna ou um segundo idioma, tem um componente biológico: isto é, em alguns aspectos (audição, capacidade de reproduzir sons), seres humanos "normais", independentemente do ambiente cultural, são iguais.

Todo bebê entra em contato com a linguagem ainda na barriga da mãe, por volta dos quatro meses, quando começa a ouvir. Cerca de seis meses depois de nascer, com o desenvolvimento do lobo temporal (associado aos sons e à linguagem), a criança começa a reproduzir alguns sons do seu idioma.

O neuropediatra Luiz Celso Pereira Vilanova, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), explica que o bebê nasce com uma enorme capacidade auditiva. "O potencial acústico de discernimento de sons, como os de um idioma, é muito grande. Mas, conforme a criança deixa de ser exposta à língua, perde a capacidade de identificar aqueles sons." Um paralelo pode ser traçado com outro dos cinco sentidos, a visão. Se uma pessoa com uma capacidade visual normal usar um tampão por um longo período, ficará cega.

Segundo Vilanova, o potencial inato de identificação dos sons de uma língua persiste durante os quatro primeiros anos de vida. "Quando já não tenho mais essa capacidade, transformo os sons daquele novo idioma em algo semelhante à minha língua materna", afirma. Na opinião de Gilberto Xavier, professor do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da USP, a idade crítica acontece mais adiante, por volta dos 16 ou 17 anos. "Quem é exposto a nativos até essa idade consegue identificar e usar os fonemas, sem sotaque", diz.

Por volta dos 20 anos, o sistema nervoso está "maduro" e não passa mais por transformações macroscópicas. Dessa forma, quando se aprende uma língua já adulto, as regiões do sistema nervoso que são acionadas para esse processo são diferentes daquelas da língua materna (ou das línguas aprendidas quando jovem).

Stella Tagnin, professora do Departamento de Letras Modernas da USP, afirma que não há como aprender uma nova língua sem levar o conhecimento adquirido (acumulado) para o novo aprendizado. "A língua nativa influencia o aprendizado do novo idioma. Um inglês terá mais facilidade para aprender alemão do que um brasileiro, devido a algumas semelhanças estruturais e de vocabulário. Mas a proximidade também tem pontos negativos, que são interferências, como falsos cognatos ['rico', em espanhol, por exemplo] e dificuldade de separar um idioma do outro [levando a misturas como o 'portunhol']", explica.

Por isso, o brasileiro que passa a estudar inglês já adulto tende a pronunciar o fonema "th", inexistente no português, como "dê"; um alemão, na mesma situação, puxa para o "zê". A dificuldade também vale para a "melodia" da língua: entonação e ritmo.

Depois da capacidade auditiva, o segundo fator que interfere na aprendizagem é a prática. É preciso treino para conseguir produzir sons, explica Xavier, o que envolve a musculatura da boca e a da garganta, além da respiração. Uma vez que a criança treina a produção dos sons, ela precisa dar sentido a eles: a soma de fonemas (sons) resulta em palavras, que têm um significado —pode ser um objeto concreto, um conceito abstrato, uma ação ou uma condição, por exemplo. É a fase em que palavras soltas são assimiladas: bebê, carro, água. O último estágio é o de aprendizagem das regras de construção da linguagem, a gramática. Conceitos abstratos, como sujeito e verbo, precisam ser sistematizados.

Nesse aprendizado inicial, o fator cultural é fundamental: alguns idiomas têm uma riqueza sonora maior que outros, isto é, uma variedade maior de fonemas (unidade mínima dos sons de uma língua), que podem ou não ser compartilhados com outros idiomas. Outro ponto importante que interfere na avaliação dos sons é relação entre a forma como um idioma é escrito e como ele é falado.

"Nesse aspecto, as línguas de origem latina são mais fáceis, pois qualquer pessoa que aprenda a ler adequadamente é capaz de reproduzir os sons. Já no caso do inglês, é preciso ouvir a palavra antes de reproduzi-la", explica Xavier.

Por exemplo, os 40 fonemas (sons) da língua inglesa podem ser representados por 1.120 grafemas (letras, combinações de letras, acentuação —os símbolos gráficos de uma língua). Já no italiano, apenas 33 grafemas dão conta dos 25 fonemas do idioma. Uma pesquisa publicada na "Nature Neuroscience", em janeiro de 2000, mostrou que, no italiano, a conexão mais simples entre grafemas e fonemas (em relação ao inglês) faz com que as pessoas aprendam a ler mais rapidamente.

Outra diferença ocorre entre escritas fonográficas e pictóricas. Idiomas ideográficos, como japonês ou chinês, exigem mais do hemisfério direito, mais ligado à percepção artística. Já as línguas ocidentais exigem mais do hemisfério esquerdo, associado a códigos e à lógica.

Divulgação/Wellcome Trust
Lobos temporais de falantes do idioma mandarim (acima) e inglês (abaixo). Nas imagens, regiões marcadas em roxo reconhecem palavras inteiras, e as em azul processam fonemas. A área em branco é responsável pelo reconhecimento de melodia e entonação, mas não interfere na compreensão do que é ouvido
Uma pesquisa divulgada em junho pela UCL (University College London) mostrou que as áreas do encéfalo que são ativadas pela linguagem podem variar de acordo com o idioma. Ao fazer um "scan" do cérebro de indivíduos que tinham o inglês como língua materna, viu-se que apenas o lobo temporal esquerdo era ativado quando eles ouviam palavras em seu idioma. Com voluntários chineses que tinham o mandarim como primeiro idioma, o experimento apontou atividade cerebral tanto no lobo temporal esquerdo como no direito.

Acredita-se que o lobo temporal esquerdo associe os sons da fala, para que formem palavras. Já o direito teria como função processar melodias. Como no mandarim a entonação pode modificar o significado das palavras (a palavra "ma", por exemplo, pode representar "mãe", "cavalo" ou "maconha"), os pesquisadores acreditam que os chineses usem o lado direito para interpretar a entonação e a melodia da palavra, de forma a alcançar o seu significado correto.

"Esse estudo demonstra que a língua que aprendemos quando crianças pode afetar as regiões do cérebro que usamos para entendê-la", explica à Folha a coordenadora da pesquisa, a psicóloga Sophie Scott, do Instituto de Neurociência Cognitiva da UCL.

Com o intuito de promover a exposição precoce a um idioma estrangeiro —e evitar problemas futuros—, algumas escolas oferecem educação infantil em uma segunda língua. A idéia de imersão artificial causa um certo estranhamento, mas há um respaldo científico à proposta, e o aprendizado geralmente é maior do que em cursos de línguas mais tradicionais.

Uma ressalva feita pelo neuropediatra Vilanova diz respeito às crianças com dificuldades de aprendizagem ou fonoarticulatórias. "Elas não devem ser levadas a aprender outra língua, pois isso pode piorar a situação. Nesses casos, é preciso priorizar o ensino. Não dá para a criança aprender tudo ao mesmo tempo", adverte.

Para a ciência, em se tratando de crianças sem dificuldades, uma formação bilíngue "é perfeitamente concebível", segundo Vilanova. "Em certos países europeus, é comum as pessoas falarem duas ou três línguas. Mas estamos falando de aprendizado oral", ressalva. "A alfabetização só pode ser feita em um idioma." Da mesma forma, quem aprendeu bem dois idiomas terá mais facilidade para aprender a terceira e a quarta língua. "Não é raro o bilíngue que aprende o terceiro idioma sozinho."

Mesmo sendo difícil de definir, a inteligência é um pré-requisito para a aquisição de novos conhecimentos. Para Xavier, do Instituto de Biociências da USP, a inteligência seguramente está ligada à capacidade de aprender uma língua.

"Podemos definir a inteligência como a capacidade de resolver problemas", diz. O estudo da gramática, por exemplo, exige uma capacidade de associação de idéias que permita trabalhar com conceitos abstratos, como sujeito e verbo.

"O sistema de memória ligado ao aprendizado de línguas é a memória operacional, que tem a capacidade de reter informações temporariamente, enquanto são úteis. As pessoas guardam itens de informação, e isso aumenta a capacidade delas de relacionar esses itens e montar uma solução", afirma. O professor ressalta, entretanto, que esse processo é passível de melhoria, isto é, pode-se treinar a memória.

Em "O Instinto da Linguagem", Pinker aponta que existem vários tipos de deficiências neurológicas e genéticas que comprometem a linguagem, mas poupam a cognição —e vice-versa. Pessoas com graves deficiências intelectuais podem apresentar fluência e gramaticalidade de linguagem, como esquizofrênicos, pacientes com mal de Alzheimer e algumas crianças autistas.

Mas não bastam as aptidões físicas (ouvido exposto precocemente e inteligência). Boa parte do aprendizado é feita pelo próprio aluno: estudo, dedicação, motivação, contato permanente com a língua.

"Aprender inglês —ou qualquer outra língua estrangeira— é uma atividade consciente e cognitiva. Osmose não funciona", ressalta o professor de inglês Manuel Antônio da Silva, 51, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). "As pessoas podem saber mais palavras, mas a exposição por si só não ajuda", afirma.

Professor há 20 anos, Manuel, conhecido como Mané, é um exemplo de que a dedicação vale a pena. Depois de completar a escola pública, onde teve aulas de inglês e francês, em Campinas (SP), vivia de bicos.

Na praia, conheceu uma secretária do CCBEU (Centro Cultural Brasil-Estados Unidos) que, vendo seu interesse por rock inglês, sugeriu que pedisse uma bolsa de estudos na escola. "Quando comecei o curso, estava com 20 anos e trabalhava no laboratório de línguas", lembra.

Em três anos, completou o curso. Enquanto isso, retomou e completou a faculdade de letras na PUC de Campinas. Com os diplomas debaixo do braço, foi bater à porta da diretora do CCBEU. "Disse que gostaria de dar aula, e ela concordou em me dar dois grupos, para ver como eu me viraria."

Pouco tempo depois, estava contratado, com carga máxima de aulas. Em 1989, ganhou uma bolsa para fazer mestrado em literatura nos EUA. Há dois anos, prestou concurso para professor efetivo da Unicamp.

Mané diz que não há segredo, apenas muita dedicação. "Quando fazia o curso, ia para o CCBEU pensando em inglês em tudo que tinha para fazer naquele dia. Assim que chegava, tirava as dúvidas com um professor. Mesmo hoje, ouço rádios estrangeiras, faço ginástica assistindo a programas internacionais na TV a cabo e, em português, só leio o jornal. Aprender é para sempre, você precisa manter contato com a língua."

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