Folha Online sinapse  
30/09/2003 - 03h10

Doutores em liberdade

HELOÍSA HELVÉCIA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Cachorro de estimação já vai à escola. No começo do mês, um grupo de estudantes e felizes proprietários decidiu em assembléia que, desde que os cães sejam dóceis e o tempo esteja firme, todos podem levar seus bichos para a aula.

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Gianluca Matavelli, 5, na goiabeira da escola Lumiar
Aula é modo de dizer. A escola onde o caso se deu passa longe daquela unidade com horário e tema definidos que ainda se entende pelo termo. Aberta na região central de São Paulo no início do ano, depois de longa incubação, a Lumiar está pondo à prova uma concepção de ensino democrático que não separa estudo e recreio, não separa estudantes por série, idade, sexo ou origem social, não separa o conteúdo em disciplinas e não separa os que ensinam dos que aprendem.

"Aqui já se produz conhecimento em conjunto. As crianças participam de fato das decisões, não é aquela história de que as regras 'são conversadas'. Destituímos o poder do professor", diz a socióloga Helena Singer, 35, diretora da escola.

Não tem professor, mas tem "mestre". Que não precisa ter formação na área de educação. Basta ser apaixonado por um assunto, saber fazer algo muito bem e gostar de crianças, para desenvolver atividades com elas e contagiá-las com sua paixão. Pode ser mestre de capoeira, artista circense, físico, o que for.

Tem também a figura do educador, cujo papel é o de um guia, que poderá acompanhar o educando dos 4 aos 18 anos. "Na faixa etária inicial, ele é mais uma referência para os pais, sabe dizer em que fase a criança está. Depois, vai ajudar o estudante interessado em astronomia, por exemplo, a pesquisar, visitar museus etc.", explica a diretora. Há um educador para cada dez crianças.

A escola é vinculada à Fundação Semco. Foi idealizada pelo empresário Ricardo Semler, 44, autor do best-seller "Virando a Própria Mesa", no qual conta como aumentou os lucros da Semco dando poder aos funcionários. Agora ele vira a mesa do professor, dá poder aos alunos.

Nesses primeiros meses de funcionamento, vários mestres que não agradaram já foram afastados. "É fácil fazer mudanças numa escola que não tem grade horária nem disciplina fixa", diz Helena.

A frequência canina também vai ser reavaliada. No dia da estréia, tudo correu bem: os donos assumiram a responsabilidade pelos cães, conforme o combinado. Só dois dos 22 alunos —crianças de dois a sete anos— mostraram um pouco de medo. A novidade pode ou não ser derrubada na próxima "roda", reunião semanal em que adultos e pequenos fazem propostas e votam em pé de igualdade.

As decisões são sempre reversíveis; o tempo e o espaço, flexíveis. Os estudantes podem ficar na escola entre quatro e oito horas diárias e não são obrigados a participar das atividades. Eles se esparramam pelo casarão dos anos 30: optam entre quintal, galpão de artes, sala de jogos e ambientes multiuso cheios de recursos cenográficos, que aumentam ou encolhem de acordo com os interesses dos alunos. A vida escolar é organizada em torno desses interesses, da administração ao currículo.

Currículo, lá, é chamado de mosaico e montado e remontado com base em uma certeza: a de que não dá mais para dizer qual conhecimento específico será necessário à realização pessoal e profissional do cidadão nos próximos anos. "A seleção de áreas às quais crianças e adolescentes são expostos evidencia processos excludentes preconceituosos, que restringem o conhecimento. O objetivo da educação deve ser habilitar o indivíduo a aprender qualquer ofício e se aprofundar em qualquer área, seguindo seu ritmo e suas inclinações", escreve Helena na proposta educativa.

Trocado em miúdos, significa que, se a criança anda fascinada por peixe, dá-lhe peixe: filme de peixe, livro de peixe, visita a aquário, mestre especialista em peixe. "O conteúdo é um instrumento para desenvolver as habilidades e competências de que falam os parâmetros curriculares. Tanto faz o meio", afirma a diretora.

E se o instrumento escolhido for exclusivamente o videogame? Aí o educador pode apresentar à criança jogos que considera mais adequados, mas nunca a atividade preferida será interditada. "Não adianta dizer: 'Agora não vai jogar'. Aqui a criança pode passar a tarde fazendo o que gosta. Criar um sujeito com foco é investir no seu interesse, e não obrigá-lo a uma atividade na qual não quer se concentrar", diz Helena.

O desafio é ampliar naturalmente o repertório do aluno a partir daquele que ele já maneja, confiando nos estímulos do próprio ambiente. No caso, é um ambiente internacional e multissocial: a Lumiar é bilíngue, recebe visitantes estrangeiros e acolhe na mesma proporção crianças que pagam mensalidade e bolsistas subsidiados pela fundação.

Essa pedagogia centrada no estudante é inspirada em Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que acreditava nas tendências espontâneas da criança e pregava uma educação naturalista. A tradição vem se ramificando desde a segunda metade do século 19, com as teorias de Johan Heinrich Pestalozzi, de Liev Tolstói, de Alexander Sutherlan Neill e do brasileiro Paulo Freire, entre outros.

Há centenas de escolas democráticas no mundo —algumas são analisadas no livro "República de Crianças" (Hucitec, 1997), de Helena Singer, que estuda essas instituições desde 1992, quando iniciou sua tese para o mestrado em sociologia da educação. O internato inglês Summerhill, a Escola da Ponte, em Portugal, e a norte-americana Sudbury Valley School são as mais famosas. Essas e outras instituições foram pesquisadas pela equipe da Lumiar durante a elaboração do projeto.

"Não encontramos, nas escolas visitadas, um modelo pronto para seguir, uma experiência que efetivamente ensinasse crianças livres", afirma Semler. Segundo ele, há pouco em comum entre a recém-nascida Lumiar e a veterana Summerhill, cuja experiência revolucionária é quase sempre folclorizada: "Sumerhill é um exemplo de escola que encantou pelos ideais, 20 anos atrás. Mas o seu foco é num só aspecto, o da liberdade, que, apesar de vital, é pouco. Nosso objetivo é desenvolver cidadãos que tenham profundo conhecimento e que conheçam a si mesmos".

Um diferencial da experiência brasileira em relação a outras iniciativas libertárias seria o tratamento personalizado, segundo Helena Singer: "Aqui nada é padronizado, a escola é diferente para cada criança, por isso o espaço é flexível". No mesmo momento, uma dupla de meninos busca tatu-bola no jardim, alguém lê história para a menina no canto dos brinquedos, outra dupla de alunos monta territórios inimigos no salão, simulando uma corrida armamentista.

A alfabetização também segue os ritmos individuais. "Ler e escrever é um processo natural, cada aluno aprende no seu tempo. Quem já sabe ajuda quem ainda não escreve", diz a educadora Cristiane Checcia, 28, funcionária da escola. O que é comum a todos, segundo ela, é o interesse pelos mecanismos de decisão. Hoje, a democracia serve para determinar que passeio será feito, quantas vezes se "morre" no game antes de dar a vez ao colega, e se os alunos podem ou não levar cachorro. No futuro, servirá para interferir em contratações, orçamentos, tudo. "No começo, a roda era formada só por adultos. Hoje, sua função está concreta para as crianças. Elas já provaram o resultado da participação. Apropriaram-se da coisa, o quórum da assembléia aumentou."

A Escola da Vila, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, acaba de resgatar a prática da assembléia, usada no início da sua história, na década de 80. Mas lá elas são assimétricas, diferencia a diretora, Sônia Barreira, 45: "A opinião do professor não tem o mesmo peso da opinião do aluno. Não fingimos que eles vão deliberar sobre temas que não são da sua competência. A idéia das nossas assembléias é ressignificar as normas que regulam o convívio".

Na opinião da educadora, o projeto da Lumiar é bonito, mas ilusório: "Enquanto se trabalha no nível infantil, é fácil manter a coerência com o discurso. Quando a escola implementar a continuação da escolaridade, vai se deparar com questões, porque não se formam competências sem recheio, só com atividades, isso é meio mágico. Há uma cultura historicamente organizada que precisa ser transmitida num processo sistemático. E há, sim, conteúdos mais importantes do que outros".

Já Ricardo Semler diz que só partindo do zero é possível criar um currículo útil para este século: "Pergunte a qualquer adulto se ele sabe cinco siglas da tabela periódica, se sabe identificar constelações no céu, se sabe colocar cinco oitavos de açúcar numa xícara. As evidências de que o ensino tradicional fracassou são alarmantes, mas ninguém quer lidar com a essência. Preferem fazer melhorias marginais num sistema obsoleto".

Por enquanto, dá para dizer que as crianças adoram sua escola democrática e que ganharam autonomia, nesse primeiro semestre de trabalho. Foi essa a tônica dos relatos, na última reunião de pais. "É espantoso ter 40 pais felizes com um sistema que era tido como experimental e até perigoso", diz Semler, segundo quem a confusão entre liberdade e anarquia é um defeito de raciocínio dos adultos amedrontados: "Ora, as crianças da Lumiar seguem regras, com a diferença de que não são imposições dos adultos. Aprendem autodisciplina, a única disciplina valiosa e duradoura".

Até agora, no Brasil, só as ONGs têm projetos socioeducativos que não seguem a estrutura disciplinar e seriada. A Lumiar é a primeira experiência desse tipo a oferecer ensino formal. Seus alunos têm até 7 anos, mas trata-se de educação formal, englobando os níveis infantil, fundamental e médio. As maneiras de avaliação são alternativas, só que traduzíveis nas classificações usadas em outros sistemas de ensino.

A iniciativa está sendo acompanhada por centros de pesquisa em educação. Há conexões entre a escola e universidades como USP, PUC, Harvard, MIT. "A pretensão é criar um modelo multiplicável. Já estamos discutindo a adoção de uma escola pública no interior", afirma Semler.

Neste início, com alunos ainda pequenos, a Lumiar não difere tanto, à primeira vista, das escolas infantis mais lúdicas. Apesar da distância entre os respectivos fundamentos, uma comparação possível é com a Escola Viva, na Vila Olímpia (zona oeste de São Paulo). Esta ainda não aceita cães, mas mantém coelhos no quintal, dá igual importância à matemática e à culinária e voz às crianças, por meio da roda diária.

Trinta anos atrás, a Escola Viva era só um ateliê de artes. Quando entrou no ensino formal, sofreu críticas pelo "espontaneísmo", parecidas com as feitas hoje à Lumiar. Também enfrentou a ansiedade dos pais, por não supervalorizar a prontidão para a alfabetização e estimular todas as outras formas expressivas. Uma das sócias-fundadoras, Helô Pavan, 53, classifica a nova escola de vanguarda como "utópica", mas contrapõe: "Não há ensino sem utopia".

Pavan, que coordena a divisão infantil, hoje com 640 alunos, só alerta para os riscos do crescimento: "É preciso segurar a onipotência, estabelecer limites de expansão. Escola tem de crescer devagar, para não perder a trama inicial". Ela diz que a construção do ensino é feita de miudezas. "É preciso duvidar sempre das próprias convicções, perceber o que acontece na prática e aí aprimorar a idéia inicial. Para que os princípios permaneçam vivos em cada um, do porteiro ao diretor, a grande teoria tem de ser traduzida nas relações, nas coisas pequenas do dia-a-dia."

É uma visão próxima à da pedagoga Vera Lúcia Barreto, 62, que integra o conselho da Lumiar e dirige o Vereda, centro de estudos fundado por Paulo Freire. Para ela, toda a gestação teórica da nova escola foi "muito pouco" perto desses oito meses de funcionamento: "As idéias não estão redondas, mas a prática começa a gerar uma reflexão mais consistente. Não é na discussão que se acha o rumo de uma escola livre, mas fazendo".

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