Folha Online sinapse  
30/09/2003 - 02h04

Íntegra: "O homem precisa mesmo se apaixonar?"

da Folha de S.Paulo

Confira abaixo a primeira parte da transcrição da palestra "O homem precisa mesmo se apaixonar?", com o escritor Carlos Heitor Cony, no terceiro dia da "Semana Sinapse", mediado pelo ombudsman da Folha, Bernardo Ajzenberg.

Carlos Heitor Cony - Bom, se eu soubesse a resposta não estaria aqui, não é? Se o homem precisa se apaixonar ou não. Então, também estou na dúvida, mas antes, eu queria agradecer a presença de vocês, pelo trabalho de vir aqui, a apresentação gentil do Bernardo Ajzenberg, que é ombudsman. Eu não invejo o cargo dele porque ele é obrigado a ler todo o jornal todos os dias, inclusive, as minhas crônicas, eu acho isso um martírio e por falar em martírio eu já vou entrar no assunto, porque a palavra paixão - eu sou muito chato falando, escrevendo também, mas falando sou muito pior - vem de um tempo latim tardo ou melhor latim decadente fácil e que significa martírio. Muita gente esquece isso, não é? Quando eu era criança ouvia falar da Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, na Semana Santa, não é?

Eu não entendia, paixão, eu imaginava paixão a gente é apaixonado por mulher, apaixonado pelo clube, apaixonado por alguma coisa e vida, paixão e morte. O que é paixão? Depois é que eu vim a entender que paixão, realmente, vem dessa raiz latina de martírio. Ou seja, paixão é martírio. Isso já basta para isolar a paixão diferente de - muita gente pensa que a paixão seria o superlativo do amor, seria, digamos assim, uma caricatura do amor, ou melhor, seria uma mudança de grau, ou seja, o amor e a paixão teria o mesmo gênero, mas no grau a paixão seria mais acima do amor, que é uma coisa maior do que o amor. Esse é um exemplo bastante prosaico, seria como o resfriado e a gripe; resfriado é uma pré-gripe, a gripe já é uma outra coisa. Resfriado é uma alergia ao passo que a gripe já é um vírus.

Então, essa comparação resfriado e gripe, estou resfriado, estou amando, estou gripado, estou apaixonado. Isso é muito claro, mas não é verdadeiro. Não é verdadeiro pelo seguinte: porque a paixão, pelo menos a pergunta que me fizeram é a seguinte: o homem precisa se apaixonar? Eu acho que sim. Mas eu pergunto: mas que paixão? O que significa exatamente a paixão? Como caricatura do amor, ou melhor, como superlativo do amor não-necessariamente. Não-necessariamente porque eu acho que o amor ainda é, digamos assim, um dos sentimentos mais nobres do animal racional. Acredito que o amor foi definido como humilde, paciente, laborioso. Tem aquele famoso trecho de São Paulo aos Romanos: Se eu falasse a língua dos anjos e não tivesse amor seria como nada. Quer dizer, então o amor é uma coisa positiva, uma coisa, digamos assim politicamente correta e ninguém tem nada contra o amor.

Já a paixão não, a paixão já é, digamos assim, se fosse uma mudança somente de grau a paixão seria um grande amor, mas não é bem verdade isso. A paixão, realmente, atua, funciona, numa atmosfera própria. A paixão não é amor, a paixão é, talvez, um ódio às avessas. Não sei quem disse isso: um ódio às avessas. Mas tenho pensado muito nisso, mas é um ódio às avessas, porque o ódio. Isso já desde a Grécia pré-socrática já se pensava nisso, que o ódio é uma força muito mais positiva do que o amor, embora, seja difícil admitir isso porque a gente sempre fala, não é? Só o amor constrói para a eternidade.

Dante dizia: o amor que move o Sol e as outras estrelas. Foi assim que ele terminou a "Divina Comédia", ou seja, o amor como um sentimento positivo. Mas não é exatamente um grande sentimento construtivo. O ódio constrói muito mais. Por quê? Porque o ódio é uma forma de martirizar alguém ou a si mesmo ou aos outros. E o homem tem uma tendência, o homem sendo um animal finito, um projeto inconcluso da natureza - estou entrando assim num terreno muito... -, mas o homem, realmente, ainda não chegou a si mesmo. Nós não sabemos, exatamente, o que estamos fazendo no mundo. Dominamos a tecnologia, dominamos vários setores do pensamento, mas não respondemos ainda as coisas básicas, ou seja, quem somos, o que estamos fazendo aqui, qual o sentido da vida.

Hoje, por exemplo, amanheci meu dia no cemitério. Não foi nada, morreu a mulher de um amigo e tive que ir lá e via as capelas todas cheias, não é? Então, eu pensei o seguinte: vou ter que ir a São Paulo e tal fazer a palestra lá, convidado pela Sinapse, eu pensei, mas puxa, eu vou terminar um dia aqui. Aqui ou em outra capela parecida. Então, o que eu vou fazer lá fora? Por que já não fico logo aqui pulando etapas, superando etapas? Vou fazer tanta coisa que eu não gosto: tomar avião, enfrentar as ruas, se eu ficar logo aqui já estou onde eu estou, onde eu devo ficar e onde um dia eu vou ficar como os outros todos ficam. Então, nesse sentido, o homem é um ser inconcluso e ele, quando ama, procura superar essa finitude dele.

Então, ele ama, mas, na realidade, o amor nada mais é do que o egoísmo. A gente ama a si mesmo em outras veias. Uma definição que deram do amor materno, que é um dos amores, o amor materno é um amor do próprio sangue em outras veias. E, o amor, no fundo é isso também é o amor da gente mesmo em outras pessoas. Já a paixão não, a paixão, como eu disse, não é uma diferença de grau é uma diferença de gênero. A paixão é, realmente, um pique, é um momento em que o homem se defronta consigo mesmo e nem sempre - nem sempre - ele pode, digamos assim, enquanto ele pode disciplinar (..) o amor, escolher o amor, fazer uma (...), ele tem um elenco de caminhos, de atalhos, ele pode disciplinar o amor, fazer o amor render para si mesmo.

A paixão não, a paixão extrapola disso tudo. A paixão é fora de controle. O Nelson Rodrigues - falam muito que os cariocas gostam de citar o Nelson Rodrigues, mas sempre é bom citar o Nelson Rodrigues, porque eu sou carioca - dizia que o amor que acaba não é amor. Outra verdade isso, porque a tendência do amor é não acabar. O amor tem uma infinitude. Daí o amor não se casa muito bem com o homem que é finito e a paixão cabe mais com o homem. Por quê? Porque a paixão é finita. A paixão não dura sempre.

Quando eu escrevi um livro chamado "A Casa do Poeta Trágico" muita gente me perguntou a diferença entre paixão e amor. Eu dizia que a paixão que não acaba não é paixão, ao contrário do amor, não é? Que contém essa origem: amor que acaba não era amor, a pessoa estava equivocada. Agora, paixão que não acaba, essa sim, essa, realmente, é paixão, porque a paixão é uma curva, é uma curva de nível. O grande charme da paixão é que o apaixonado sente, percebe, que ela é transitória, que aquilo vai passar e já (...) já antegoza - palavra horrível, não é? Antegoza, já antegoza o momento que vai ficar livre daquilo. Já o amor não.

O amor é como se fosse um destino, no fundo também o amor é uma coisa horrível (risos). Eu tenho uma... não, não estou citando não, eu estou citando Bergman. Luigi Berry(?) tem um filme que é pouco visto, é pouco citado: "Sorrisos de Uma Noite de Verão" (Somanafens liden(?) a única palavra que eu sei em sueco é essa Somanafens liden(?) Sorrisos de Uma Noite de Verão) é a história de um casal, dois casais, aliás, e um sujeito, um bolha, um conde que é cavalariano gosta de esgrimas, duelos e armas, uma porção de amantes, caça, enfim, um sujeito desses que usa monóculo, um sujeito fartamente ridículo, não é? E a mulher dele deve estar dizendo, esse camarada é horrível, é horrível.

Ele, mas por que você gosta dele? Por que você está amando ele? Ela diz: é, mas ele é horrível, ele só fala das amantes dele, das armas dele, dos cavalos dele, nas brigas dele, no dinheiro dele, um sujeito horrível, horrível, horrível. Depois, ela pára e diz assim: aliás, que o amor é uma horrível ocupação. Essa palavra é muito boa: o amor é uma horrível ocupação.

Já a paixão não, a paixão é muito boa, embora tenha a raiz do martírio, porque na paixão a gente justifica. Por que há tantos crimes passionais? Porque, realmente, é uma hora de verdade, ou seja, a paixão seria um momento de verdade e o amor nem sempre é. O amor a gente pode amar até certo ponto por obrigação, por hábito, por comodismo. É um sentimento bem comportado,m a paixão não, a paixão extrapola, a paixão sai dos limites normais e entra naquele território fantástico que é o do delírio.

Não é à-toa que o próprio Direito Penal considera o crime passional um crime diferente. Uma das minhas experiências mais deploráveis da minha vida de repórter foi quando eu entrevistei o delegado Fleury, Sérgio Paranhos Fleury, hoje, talvez, esse nome não diga nada a vocês, mas o Sérgio Paranhos Fleury foi o delegado do DOPS no tempo do regime militar. Era um homem que, atuava aqui em São Paulo basicamente, e era um grande caçador de comunistas, torturava pessoalmente, matava pessoalmente e eu fui fazer uma entrevista com ele, me recebeu com uma metralhadora em cima da mesa, não é? Foi uma situação meio constrangedora. Eu nunca estive tão perto de uma metralhadora quanto naquele dia e volta e meia ele mexia na metralhadora e botava o cano assim de lado assim. Procurou, evidentemente, ser gentil, dentro daquele trato entre jornalista e no caso autoridade, porque ele era diretor do DOPS, se não me engano. E o DOPS tinha uma empresa, alguma coisa funesta igual ao DOPS e eu perguntei a ele várias perguntas profissionais como era o negócio, ele disse o seguinte: que ele era a favor da pena de morte e não precisa dizer porque era óbvio, ele matava a torto e a direito, mas ele estava explicando por que ele era a favor da pena de morte e que achava que a legislação devia mudar, o Brasil devia estabelecer pena de morte para qualquer crime de homicídio, menos - isso dito por Sérgio Paranhos Fleury, o homem da, o anjo da morte -, para os crime passionais. Os crimes passionais, segundo ele, uma autoridade, os crimes passionais não mereciam a morte. Por quê? Porque é uma coisa à parte da natureza.

Pulando de um polo para o outro, ou seja, pulando do Sérgio Paranhos Fleury para o Evandro Lins e Silva, que é um jurista, ministro do Supremo Tribunal Federal, acadêmico, enfim, um homem falecido há pouco tempo, um dos advogados, talvez o advogado mais brilhante da nossa geração. Foi considerado o Advogado do Século na virada de 2000, ele crivou, bom, é bem verdade que dizem que inspirado da imperialistas italianos, ele criou a palavra vitimologia. Que a vítima de um crime passional é que provoca o crime, ou seja, o apaixonado, no fundo, não é, enquanto no amor a pessoa é, digamos assim, sujeito objeto de si mesmo, na paixão é diferente, na paixão ele fica passivo. Quem conduz o apaixonado, quem determina, quem diz se está bom ou se está ruim é a vítima, ou seja, o objeto da paixão.

É o caso, por exemplo, de um clube de futebol, eu sou apaixonado pelo Corinthians, pelo Fluminense, se o Fluminense joga mal eu estou sofrendo, quer dizer, eu não fiz nada, agora, o time é que fez. Agora, eu estou sofrendo por uma coisa que eu não fiz. E, com o namorado é a mesma coisa. Enquanto no amor a gente pode dominar alguma coisa, a gente pode controlar-se e controlá-lo como ser amado, na paixão não, na paixão o objeto da paixão é completamente dependente, é completamente louco do sentimento que provoca e, muitas vezes ele é, digamos assim, até certo ponto contrário.

Vou dar um exemplo, também de caso policial, que foi muito famoso na época, da morte da Ângela Diniz, lá em Búzios, por Doca Street, bom sujeito, não tem nada, matou, tipicamente um crime passional é evidente. E, aí a gente sabe que, se havia uma pessoa que não tinha instintos criminosos, não tinha instintos assassinos, uma pessoa comum, não quero dizer que seja santo, mas uma pessoa normal, um playboy, bom sujeito e tal, mas foi ele, de repente ele viveu aquele pique, ou seja, saiu de controle. Parafraseando Pascal, que dizia que o coração tem razões que a razão não conhece, eu diria que o amor tem razões que razão conhece, a paixão não. A paixão é que está próxima disso, a paixão tem razões que a própria razão não conhece. A paixão não se conhece a si mesma. (FALHA NO MICROFONE)

Folha - Alô?

Cony - Vamos lá, agora até me esqueci o que eu estava falando. Estava falando sobre o quê?

Público - ...(Inaudível)...

Cony - Pois é, exatamente, a paixão é isso. Enquanto você controla o amor, você tem, digamos assim, é o caso, por exemplo, dessas pessoas raríssimas, dessas aves raras, que conseguem ter um amor por toda a vida. Sai no "Fantástico", fulano de tal com 80 anos, eles dão a mãozinha, diabo a quatro, velhinho, ah, muito bem. São casos raros, mas existem esses casos. Já a paixão não. A paixão não deve durar muito tempo. Paixão que dura mais de um ano eu acho que já não é paixão. Paixão, realmente, é aquele pique, aquele orgasmo, evidentemente muitas vezes, muitas vezes não, sempre doloroso.

Daí talvez o fato dos latinos, baseado no Cristo, porque usa a palavra, eu falei paixão, no latim tardio, que era "passio"(?), mas a raiz de tudo é patos, do grego, que é doença, ou seja, a paixão é ao mesmo tempo uma doença que leva ao martírio e ao mesmo tempo a soma da doença e do martírio leva àquele momento de verdade, que é talvez o grande momento que o homem pode se conhecer a si mesmo. então, ele se transtorna. Ele se transforma então no assassino, ele se transfigura, ele tem, então, de si mesmo uma noção aquele "Conhece-te a ti mesmo", do Sócrates, dos gregos.

Quando o sujeito está apaixonado sabe perfeitamente que está tudo errado, que ele está errado. Ele sabe perfeitamente até (...), ele tem uma lucidez das suas próprias contradições. Não devia estar apaixonado, mas estou.

É muito comum, sobretudo, nas mulheres que praticam o adultério - ainda bem que elas praticam o adultério, se a mulher não praticasse o adultério a vida seria muito chata -, os homens não, porque os homens são mais galinhas, não é? Os homens praticam adultério por galinhagem, a mulher não, a mulher, evidentemente, pode existir alguma, mas não todas, a mulher em princípio não é galinha. O homem não, o homem tende a ser galinha. Agora, e as mulheres, geralmente, dizem: eu amo meu marido, mas estou apaixonada pelo meu amante. É o momento da verdade dela, ou seja, ela coloca o marido acima de tudo, gosta do marido, é bom sujeito, paga as dívida, chega em casa cedo, entendeu?

Enfim, é aquela boa pessoa, pai dos filhos, não é? .......... o pessoal, o pessoal vai pedir para eu ir embora.(Risos). Então, vê a diferença entre o amor e a paixão é aquela coisa que bate no sentimento do homem, ouviu? Tem uma... uma pessoa tem alguma..., a pessoa entende o que é o amor, a paixão já é inexplicável. O que é o óbvio? O óbvio aquilo que você sabe, o óbvio é esperado, aquilo que... outro dia eu recebi pela internet umas coisas óbvias e gostei muito, não é? É fazer as coisas que acontecem nas pessoas certas para fazer aquilo acontecer. Digamos, por exemplo, a pergunta que deram foi, por que o frango atravessou a rua? Vocês viram isso ou não? Então, a resposta era a das feministas era porque o frango queria se exibir para demonstrar que era melhor do que a fêmea.

O Maluf dizia: não tenho nada a ver com isso, (risos) falem com meus advogados e tal.

A Carla Perez ia dizer, se não me engano, deixe-me ver: não, isso é próprio dos mamíferos.(risos). Quer dizer, franco para ela é mamífero. É o esperado. Isso está no território do amor, ou seja, no território das coisas que deve acontecer. Já a paixão não, a paixão escapole disso, a paixão não tem regra, a paixão é: há um verso francês que diz: que a paixão será convulsiva ou não será. Quando o amor tende a uma certa tranquilidade, a uma certa plenitude, eu diria até uma platitude, o amor, às vezes, é chato, a paixão não. A paixão é um grande momento.

Se a gente fosse pensar num grande momento da nossa vida, se cada um de nós, no momento final da vida, fizermos um exame de consciência, um exame de carne e formos arrolar os principais momentos da nossa vida, nós vamos verificar que as grandes coisas que nos aconteceram foram nos momentos que nós estivemos apaixonados, ou seja, transtornados, fora das bitolas, fora das coisas que se espera de nós mesmos.

Bom eu acho que não respondi ainda se o homem deve ou não deve ou precisa ser apaixonado. Talvez ele não precise porque o que o humano, precisa, na realidade, é de ar para respirar, é de proteína para se alimentar, enfim, o homem pode sobreviver com poucas coisas, mas, desde o momento que um homem se transformou num produto cheio de penduricalhos, cheio de exigências, o homem então precisa de uma porção de justificativas para isso para aquilo outro a paixão fica sendo ainda, talvez o imã que dá um sentido, forma o núcleo da sua própria vida. Tirando a paixão, eu digo aí no meu caso pessoal e acredito que isso possa ser aplicado a todos vocês, se tirar os momentos em que eu agi apaixonadamente eu sou uma pessoa completamente idiota.

Não quer dizer que quando eu estou apaixonado eu deixe de ser idiota, mas pelo menos eu sou um idiota consciente (risos), entendeu? Estou fazendo uma idiotice, mas continuo fiel a mim mesmo. Então, nesse momento, realmente, eu consigo ser eu mesmo. Agora, quando não estou apaixonado, realmente, eu sou uma pessoa que penso, ajo e caminho pela vida de uma forma bastante medíocre.

Outro dia eu estava lendo o Borges, o Jorge Luiz Borges e ele se definiu, uma das últimas anotações que ele deixou escrita, ele dizia: no fundo, eu sou um homem que há mais de 30 anos carrega um saco de água quente de um lugar para o outro. Quer dizer, no momento em que o Borges resolveu amar a si mesmo, ele viu a sua realidade. O que ele era. Não o Borges escritor que nós conhecemos, não o poeta, o ensaísta, mas o homem que quando ia de um lugar para o outro tinha que levar o saco de água quente, porque devia ter dores nas juntas, dores não sei onde. Então, ele se limitou, com toda obra dele, a ser apenas aquele homem, que uma vez por mês, uma vez por semana, era obrigado a ir de um lugar para o outro levar um saco de água quente. Quer dizer, ele reduziu a vida dele a um saco de água quente.

Agora, quando a pessoa está apaixonada é diferente a pessoa é mais alguma coisa do que isso, ele transcende esse prosaísmo da água quente, da bolsa de água quente e passa a ser um criador de si mesmo. Um homem apaixonado tem condições de ser, realmente, de ser aquilo que o César disse uma vez, quando ele precisava atravessar o Mediterrâneo e estava tempestade, então, foi aquela famosa frase: "Navegar é preciso", não isso quem falou foi Pompeu, o César falou outra coisa. Os remadores estavam com medo, ele pulou dentro do navio e gritou: César vai a bordo. Isso com paixão. Paixão dele mesmo, por ele mesmo, ou seja, esses grandes momentos do homem, esses momentos críticos do homem, aquilo que o Ezra Pound(?) chamaria de ponto luminoso da criatura humana o homem só consegue quando está, realmente, apaixonado.

Agora, nem todo mundo precisa ter esses grandes momentos. Eu, se me fosse dado escolher entre ser um apaixonado e não ser apaixonado eu preferia talvez não ser apaixonado. Mas acontece o seguinte: eu também se pudesse escolher vir ao mundo ou não vir ao mundo, eu sinceramente não sei se gostaria de vir ao mundo. São coisas aleatórias, porque o amor também, a paixão, enquanto o amor tem alguma coisa de racional, a paixão é irracional, ou seja, o amor é aquele - voltando ao Pascal - sentimento que a gente não sabe por que existe.

Voltando então à nossa adúltera, nossa adúltera não à adúltera, idéia geral, ela diz que ama o marido e é apaixonada pelo amante. Eu acho que isso define exatamente o que é paixão. A paixão é algo mais, aquele plus que dá à vida o sentimento de que ela não passou em brancas nuvens. Estou citando aí um poeta e quero dizer então que os poetas, realmente, não são apaixonados, porque os poetas se (...) demais os seus sentimentos. Talvez, nesse particular, eu acho que os grandes apaixonados são paradoxalmente os santos, que renunciam a tudo e o criminosos, que não renunciam a nada. Muito obrigado.

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