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23/07/2002 - 02h35

A universidade é só o começo

CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S.Paulo

Na última década, a universidade viveu uma espécie de milagre da multiplicação dos diplomas. O número de graduados cresceu de 225 mil no final dos anos 80 para 325 mil no levantamento mais recente do Ministério da Educação, em 2000.

Eduardo Knapp/Folha Imagem

Luis Fernando Verissimo, escritor, se prepara para devorar mais um livro

A entrada no mercado de trabalho desse contingente, porém, não vem sendo propriamente triunfal como uma festa de formatura. Engenheiros e educadores, professores e administradores, escritores e sobretudo empresários, têm sussurrado uma frase nos ouvidos dessas centenas de milhares de novos graduados: "O diploma está nu".

Passaporte tranquilo para o emprego na década de 80, o certificado superior vem sendo exigido com cada vez mais vistos.

Considerado um dos principais pensadores da educação no país, o economista Cláudio de Moura Castro sintetiza a relação atual do diploma com o mercado de trabalho em uma frase: "Ele é necessário, mas não suficiente". O raciocínio é simples. Com o aumento do número de graduados no mercado, quem não tem um certificado já começa em desvantagem.

Conselheiro-chefe de educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento durante anos, ele compara o sem-diploma a alguém "em um mato sem cachorro no qual os outros usam armas automáticas e você um tacape". Por outro lado, o economista-educador diz que ter um fuzil, seja lá qual for, não garante tanta vantagem assim nessa floresta.

Para Robert Wong, o diagnóstico é semelhante. Só muda a metáfora. Principal executivo na América do Sul da Korn/Ferry International, maior empresa de recrutamento de altos executivos do mundo, ele equipara a formação acadêmica com a potência do motor de um carro.

Equilibrados demais acessórios, igualado o preço, o motor pode desempatar a escolha do consumidor. "Tudo sendo igual, a escolaridade faz a diferença."

Mas assim como Moura de Castro, o head hunter defende a idéia que um motor turbinado não abre automaticamente as portas do mercado. Wong conta que no mesmo dia da entrevista à Folha trabalhava na seleção de um executivo para uma multinacional na qual um dos principais candidatos não tinha experiência acadêmica. "É um self-made man."

Brasileiro nascido na China, Wong observa que é em países como esses, chamados "em desenvolvimento", que existe mais condições hoje para o sucesso de profissionais como esses, de perfil empreendedor.

Aleksandar Mandic foi um dos que enxergou isso de longe, sem usar os binóculos da universidade. Em 1990, deixou seu emprego na multinacional Siemens com um cheque indenizatório de US$ 0,85 e abriu uma BBS, ancestral da internet, em sua casa.

A empresa que levava seu sobrenome começou com um micro pré-histórico, uma linha telefônica e Mandic, ele mesmo. Sete anos depois, o empreendimento seria vendido por US$ 10 milhões. "O diploma não me fez falta. Nunca quis decorar coisas que sabia que não usaria mais. Sempre fui um prático."

O dono do serviço de e-mails Mandic:Mail não está sozinho na praça. Segundo uma pesquisa realizada este ano com quase 10 mil profissionais, um em cada cinco presidentes de empresas não tem um diploma pendurado na parede.

"Esse é basicamente um reflexo do fenômeno internet, em que muitos programadores de computação, sem nenhuma formação acadêmica, acabaram criando, e presidindo, suas empresas", diz o responsável pela pesquisa Renato Scher, gerente do Grupo Catho, empresa de recursos humanos.

O sucesso dos seguidores de Bill Gates, que abandonou a faculdade no primeiro ano, também não é caso isolado na história. Para Mario Sergio Cortella, professor de pós-graduação em educação da PUC-SP, o sucesso dos sem-diploma está diretamente ligado a momentos de grande renovação tecnológica.

"A universidade ainda não teve tempo de criar uma carreira especificamente voltada para as empresas pontocom", diz o educador, para quem fenômenos como esse acontecem ciclicamente desde a criação da universidade ocidental, em Bolonha, na Itália, em 1088.

Ex-reitor da USP, onde também foi professor e diretor da Escola Politécnica, Antonio Hélio Guerra Vieira acha que o "descompasso entre a universidade e a realidade" é mais grave. Estaria por trás do que ele tem chamado de "a morte do diploma".

Foram nas suas duas casas que Vieira teve os estalos que o levaram a essa teoria. Primeiro na Poli, ambiente com o qual convive desde os anos 40. Depois, no próprio aconchego do lar.

Ele diz que vinha observando há alguns anos o aumento na evasão de alunos da escola de engenharia, e que não entendia muito bem o porquê, até que comparou o que aconteceu com seus filhos. Os três primeiros já tinham seus diplomas em medicina, engenharia e agronomia, quando o quarto filho, Paulo, lhe disse que estava deixando seu curso de administração para assumir a direção de um jornal em Campinas.

O professor argumentou que o emprego não duraria para sempre e que mais adiante o diploma seria preciso. "Ele respondeu: 'O primeiro emprego a gente consegue com o diploma, mas o segundo vem com o currículo. E ele estava certo", diz, sobre o filho, que já ganhou prêmios de marketing e hoje está montando sua empresa.

"O mercado está atrás de competência. Esse é hoje o primeiro critério do empregador", afirma o professor emérito da USP.

O "empregador" Ricardo Semler assina embaixo. Menino-prodígio da administração no Brasil dos anos 80, quando implementou uma série de medidas inovadoras em sua empresa, o autor do best-seller "Virando a Própria Mesa" defende que competência, personalidade e paixão podem facilmente superar um histórico escolar robusto.

"Para as contratações, praticamente excluímos dos nossos critérios de seleção a escolaridade", observa o presidente do grupo industrial Semco, que tem faturamento anual de US$ 160 milhões e cerca de 2.200 funcionários.

Sua descrença com a educação tradicional "estagnada e de uma monotonia medíocre" é tamanha que Semler vai lançar no começo do ano que vem uma escola para crianças com diretrizes completamente diferentes das existentes no país. Na Lumiar, projeto coordenado pela socióloga Helena Singer, cada criança escolherá as disciplinas que vai estudar, como em outras 200 "escola democráticas" pelo globo.

O objetivo do empresário é que os alunos tenham cedo o principal ensinamento que ele diz ter colhido em uma trajetória escolar que foi até o doutorado em Harvard (ao qual também não poupa críticas). "Já tivemos na empresa jovens que fizeram Harvard e que mal sabem escrever um e-mail."

Exímio não apenas na escrita de e-mails, mas na de crônicas, contos e romances, Luis Fernando Verissimo teve um currículo escolar bem mais breve -e esburacado. O escritor gaúcho, que nunca fez universidade, se autoclassifica um "péssimo aluno" no primário, ginásio e colegial. "Minhas notas eram de médias para baixo. Odiava matemática e português", conta, por e-mail, o autor.

E como Verissimo virou Verissimo? "Sou autodidata na medida em que devo o que sei, ou ao menos o que penso que sei, ao fato de ter sido um leitor voraz e omnívoro, com curiosidade sobre tudo."

Outro autodidata de peso, Evaldo Cabral de Mello, fala no mesmo diapasão. Um dos mais importantes historiadores brasileiros também receita curiosidade.

"O importante é ter formação, que não é necessariamente universitária", diz o diplomata aposentado, que cursou apenas um ano de Ciências Sociais.

O autor de livros como "O Negócio do Brasil" sustenta que no país existe um culto exagerado à universidade, como se fosse uma "panacéia". "Não existe isso: a universidade, em qualquer lugar do mundo, por melhor que seja e por melhores que sejam os professores, ainda é uma orientação. O essencial do que fizer depende de você, do grau de engajamento que tiver no trabalho, do grau de preparação prévia que você adquiriu antes de entrar na universidade", diz.

Irmão do poeta João Cabral de Melo Neto, o historiador mostra que também sabe a medida das palavras. "As pessoas acham que a universidade é a palavra final. Não é. Se for boa, é só o começo de tudo."



Colaboraram Alexandra Ozorio de Almeida, da Folha de S.Paulo, Alessandro Grecco e Fabiana Cimieri, free-lances para a Folha de S.Paulo

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  • A delicada planta da curiosidade


  • Links relacionados:
    Banco Interamericano de Desenvolvimento - www.iadb.org
    Grupo Catho - www.catho.com.br
    Harvard University - www.harvard.edu
    Mandic:Mail - www.mandic.com.br
    MEC - www.mec.gov.br
    PUC-SP - www.pucsp.br
    USP - www.usp.br


         

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