Folha Online sinapse  
27/08/2002 - 02h45

Desabafo de uma vítima dos destros

da Folha de S.Paulo

Leia, a seguir, depoimento de Nicolau Sevcenko, 49, professor de história da cultura da USP e autor de "A Corrida para o Século 21" (Companhia das Letras), entre outros livros:

Ao que parece, nós canhotos somos vistos no máximo com condescendência. Os destros tentam levar a condição no bom-humor, mas no fundo há um tom de "ainda bem que não sou assim'. Às vezes, chega a ser sádico.

Minha família vem de uma comunidade na Rússia, onde ser canhoto era proibido pela lei e pecado para a Igreja. Por pressão da comunidade, minha mãe amarrava minha mão esquerda nas costas para me forçar a usar a direita. Como consequência dessa violência, tive uma espécie de curto-circuito entre os hemisférios cerebrais. Me tornei disléxico [dificuldade de leitura] e dislálico [distúrbio da fala]. Até hoje tenho enorme dificuldade para preencher formulários, cheques e falar sob tensão, o que é complicado na minha profissão.

Tudo é feito e planejado para a mão direita, o que sempre fez com que eu provocasse muitos acidentes. Isso acentuou a idéia de que eu era uma espécie de débil mental, um monstrengo. Recebi vários apelidos durante a vida, como "nóias' ou "mongolóide'. Eu acreditava no que diziam e sempre fui muito melancólico.

Para que eu me conformasse com minha condição, minha mãe contava uma lenda russa sobre a origem dos canhotos.

Só quando já era adulto é que comecei a entender que ser diferente não significa ser inferior. Justo nessa época começou a se falar da teoria da bicameralidade —as distinções estruturais e funcionais entre cada qual dos dois hemisférios cerebrais. Descobri os potenciais notáveis de ser canhoto: o lado direito do cérebro, que controla a mão esquerda, é o da expressão artística, do simbolismo, da afetividade, enquanto o hemisfério oposto é analítico, calculista, planejador.

Portanto, para que qualquer cultura seja harmoniosa, ela deve contrabalançar as duas tendências. O ser humano só realizará o melhor do seu potencial se os dois hemisférios interagirem criativamente. Defender nossa condição não é nosso direito, é nossa responsabilidade ante a espécie humana. Dêem uma chance à esquerda!


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